Um café de atitude

Nova fronteira da cafeicultura brasileira, a jovem Região do Cerrado Mineiro é a primeira a ostentar um café com Denominação de Origem no país

Uma nova safra começa em flor. Durante dois, três dias, no máximo, a florada perfuma hectares e hectares de pés de café. A beleza efêmera traz consigo a promessa de colheitas de sucesso. "A florada tem o poder de apagar o passado. Ela é nosso réveillon", resume Ricardo dos Santos Bartholo, presidente da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado. 

Não que a Região do Cerrado Mineiro tenha um passado a apagar. Ao contrário. A primeira e única área brasileira a conquistar tanto a Indicação de Procedência quanto a Denominação de Origem para o café que produz construiu sua reputação pela vanguarda.  É mais que um slogan dizer que o café de lá é feito com atitude. É verdade. 

DESBRAVADORES - A chegada do café na região do Cerrado Mineiro é calcada numa aventura que começou por necessidade. Ao longo dos anos 1960, lavouras do Paraná e de São Paulo enfrentavam pragas devastadoras. No fim daquela década, programas de governo ofereciam incentivos a quem abrisse plantios na imensidão do Cerrado, vegetação presente em quase 50% do território mineiro. Produtores paranaenses e paulistas aproveitaram a oportunidade. 

Seria simples dizer apenas que a coragem compensou. A excelência que faz o café da região ser comprado até às cegas por importadores japoneses é fruto de quase 50 anos de trabalho. Naturalmente menos fértil, o solo do Cerrado teve de ser corrigido e manejado. Com muita tentativa e erro, os produtores encontraram as espécies mais adequadas para crescer onde o clima é seco e solar. E investiram, com apoio de unidades de pesquisa do estado, em aprimoramento e melhoramento genético das plantas. 

Abrir a nova fronteira do café brasileiro demandou mais união do que competição entre fazendeiros. Poucos lugares dispõem de estrutura de representação empresarial - federação, associações, cooperativas, fornecedores - tão organizada. 

A soma dos fatores resultou em um ecossistema extraordinário. Para uma região tão jovem, o Cerrado Mineiro responde por mais de 12,7% do café cultivado no Brasil, com 6 milhões de sacas por safra. São mais de 4,5 mil produtores espalhados por 234 mil hectares de área plantada. Em tão pouco tempo, a cidade de Patrocínio se tornou a maior produtora do país, ostentando 52 mil hectares destinados ao café. Os 55 municípios da região são os maiores fornecedores mundiais da Nespresso e da Illy, gigantes do setor. 

O município de Patrocínio é o maior produtor de café do país, com 52 mil hectares destinados ao cultivo do grão

CAFÉ DE ORIGEM - Se, a princípio, Cerrado e café não eram combinações óbvias, a ocupação cafeicultora revelou uma vocação até então desconhecida para o bioma. “Na verdade, descobrimos que temos um excelente terroir para o café. A altitude é ideal, há grande amplitude térmica com dias quentes e noites frias, chuvas na hora certa", explica Evandro Sanchez, um dos paulistas pioneiros, fundador da fazenda Dois Irmãos, na zona rural de Coromandel. 

A geografia deu notas cítricas, achocolatadas e carameladas ao café arábica. Foi questão de tempo até o Cerrado Mineiro se tornar uma referência para compradores estrangeiros, sobretudo os japoneses. Com a demanda, vieram exigências que comprovassem não apenas boas práticas no cultivo, mas garantias de qualidade e origem do café.  

Esse é um marco na obsessão da região com a rastreabilidade, palavra onipresente no vocabulário de qualquer um que trabalha com café na região - do operário de máquinas ao barista. 

Mesmo antes da Indicação de Procedência e bem antes da Denominação de Origem, os cafeicultores já trabalhavam com a exploração da origem para valorizar o grão. Desde a década de 1990, em movimento inovador, criaram a marca regional Café do Cerrado, ao invés de Café do Brasil. Já existiam também processos de certificação da origem dos grãos para diferenciar o produto no mercado global. 

A busca pela Indicação Geográfica foi uma consequência natural. Primeiro, em 2005, veio a Indicação de Procedência, protegendo o território. Oito anos depois, em 31 de dezembro de 2013, a Região do Cerrado Mineiro se tornou a primeira zona de produção de café no Brasil a conquistar uma Denominação de Origem. Todo mundo se lembra exatamente da data porque o escritório estava em festa e não era pelo ano-novo.  

Cada café é provado e classificado conforme metodologia internacional

A REGRA É CLARA - Nem todo café do Cerrado Mineiro tem Denominação de Origem. Para ser DO, o grão deve apresentar níveis pré-estabelecidos de qualidade. Para começo de conversa, o café precisa ter sido produzido em altitude superior a 800 metros. O produtor interessado deve encaminhar uma amostra do café para o Departamento de Controle e Origem da Federação. 

Lá, o café é provado às cegas por profissionais (os keygraders), que emitem um laudo da análise sensorial com base na metodologia da Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA), que classifica cafés numa escala de 0 a 100. Aqueles que alcançam notas maiores de 80 recebem o certificado e os selos de origem para o lote aprovado. Podem ser 10 sacas ou 1 mil. Todas são embarcadas, nacional ou internacionalmente, com o selo e a sacaria oficial da região.  

Além disso, o produtor precisa ser associado às cooperativas ou associações ligadas à Federação de Cafeicultores do Cerrado e os lotes da produção só podem ser armazenados em locais credenciados.  

Para se ter ideia do tamanho da exigência - e da qualidade do produto - em meio à produção anual de 6 milhões de sacas, em média, apenas 74 mil são lacradas com a Denominação de Origem. Nos últimos 6 anos, foram 530 mil sacas com a origem protegida. Hoje, são cerca de 930 produtores credenciados, mais de 1 mil propriedades e 95 mil hectares de área plantada aptos a receber a chancela da DO.

GARANTIA ESTENDIDA  - Com a conquista das indicações geográficas, vieram outros desafios. O mais importante é garantir o uso correto do nome. Assim como o queijo da Canastra, o café da Região do Cerrado Mineiro também é alvo de apropriação indevida da origem. Impedir a distorção demanda, acima de tudo, conscientização. 

"Como o café verde não é um produto final, precisa de industrialização para chegar ao consumidor, há um esforço hercúleo de coordenação de cadeia para garantir o uso correto do nome. Quando isso acontece, o ganho não é só do produtor, é de todos", acredita Juliano Tarabal, superintendente da Federação de Cafeicultores do Cerrado. 

A obsessão com a rastreabilidade ganhou um novo sentido. Não são apenas os produtores que precisam ser credenciados e responder às exigências para usar o nome Região do Cerrado Mineiro. Cooperativas, associações, torrefadores, exportadores e, mais recentemente, em mais uma inovação, importadores também devem se comprometer com as regras.

"Quem gera demanda no exterior é o importador. Ele tem o contato com os torrefadores e cafeterias lá fora. Com o credenciamento, o importador passa a ser reconhecido como operador autorizado da nossa Denominação de Origem no mercado internacional", explica Tabaral. Recentemente, as investidas sobre o mercado dos Estados Unidos, principal comprador do café do Cerrado Mineiro, resultaram no lançamento inédito de cinco microlotes de cafés DO no Whole Foods, uma grande rede americana especializada em alimentos gourmets e orgânicos.

CAFÉ É TECH - Poucos lugares do mundo têm o agronegócio tão tecnológico como o Brasil. Indiscutivelmente, o país é uma referência em inovação agrícola. Novamente, o café da Região do Cerrado Mineiro sai na frente. A tecnologia está a serviço do café desde a fazenda até o consumidor. A tal obsessão com a rastreabilidade. 

Desde 2012, a Federação de Cafeicultores do Cerrado, com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), investiu mais de R$1,2 milhão em sistemas de controle de origem. 

Hoje, com a simples leitura de um QR Code, é possível saber de qual fazenda o café saiu, os nomes dos produtores, a altitude e as coordenadas da área plantada, o tipo do café, o ano da colheita e as informações sensoriais do café. Pelo sistema, os produtores sabem exatamente onde foi parar o café produzido e vendido por eles. "Ninguém tem esse nível de rastreabilidade. Assim, garantimos a origem e isso nos destaca no mercado", acredita Ricardo Bartholo, presidente da Expocaccer. 

Com a simples leitura de um QR Code é possível saber de qual fazenda o café saiu, os nomes dos produtores, altitude e coordenadas da área plantada

Mas não para por aí. Dentro das cooperativas e armazéns credenciados, cujo principal expoente é a Expocaccer, em Patrocínio, a tecnologia é parte do processo desde a entrada até a saída do café. Cada lote que entra para estocagem é provado, classificado e descrito nos mínimos detalhes - tipo de café, corpo da bebida, acidez, notas, safra, localização precisa do talhão da fazenda onde aquele lote foi plantado e por aí vai - em um sistema online. 

Dentro do galpão, cada saca recebe uma etiqueta RFID (Radio-Frequency Identification), método de identificação automática através de sinais de rádio, recuperando e armazenando dados remotamente. Ou seja, o sistema se autoatualiza. Não há perda de tempo procurando sacas. Tempo é negócio.   

A precisão das informações permite coisas incríveis. "É possível fazer blends únicos de café usando a nossa base de dados. Já tivemos casos de torrefadores fazendo 180 combinações para formar um blend", conta Bartholo.  

ONDA DO CAFÉ - Uma teoria norte-americana divide a história recente do café em três ondas. A primeira ocorreu nas décadas de 1970 e 1980, com o boom do consumo da bebida. O aumento da demanda fez com que os produtores buscassem volume de produção e preço. Naturalmente, qualidade não era uma prioridade. 

A década de 1990 consolidou o consumo de café mundialmente. No campo, a segunda onda mirou o aumento da qualidade dos grãos e a exclusividade. Nascem as cafeterias, na trilha de Seattle, liderada pela Starbucks, a quem muitos atribuem a disseminação do consumo de café de qualidade no mundo. O café saiu de casa e da copa dos escritórios. Ganhou lugar próprio no mundo. 

A terceira onda é o momento atual, em que, além da qualidade, o consumidor quer saber a origem do que vai beber, busca novos métodos de preparo e torras mais claras. Mas não foi só o consumidor que mudou. O produtor também. 

A nova geração de cafeicultores pouco se assemelha aos pioneiros que abriram caminhos no Cerrado e ou produtores centenários em regiões tradicionais do café brasileiro, como São Paulo e o Sul de Minas Gerais. Os sucessores oxigenam os cafezais com conhecimento adquirido mundo afora, nova visão de negócios e do café em si. 

Gabriela Baracat deu novos rumos à fazenda Dois Irmãos ao apostar no nicho de cafés especiais

Gabriela Baracat é o cérebro e o coração da Fazenda Dois Irmãos, fundada pelo pai, Evandro Sanchez, e pelo tio, em 1986. Ela conhece cada talhão dos mais de 400 hectares da propriedade e sabe o que cada pedaço de terra pode oferecer. 

Quando ela, recém formada em agronomia, assumiu o negócio da família, buscou colocar a fazenda em outro patamar. Foi atrás de certificações de boas práticas nacionais e internacionais, investiu em novos maquinários, investigou como o café ganha características únicas dependendo de onde foi plantado.  

A perícia e o cuidado fizeram com que o seu Catuaí Amarelo recebesse o prêmio de Melhor Café do Cerrado Mineiro em 2017. "O mérito da produção de cafés especiais é todo da Gabriela, isso é ideia dela", reconhece Sanchez. Em 2018, o café Dois Irmãos novamente entrou entre os 30 melhores do Cerrado e entre os 150 do país. 

Denominação de Origem, pra Gabriela, é o resultado de um trabalho incessante em busca de qualidade. "A planta me dá tudo que eu preciso. No pé, tenho um café de R$ 5 mil. O que eu faço com ele depois que colho é tentar não desvalorizar o que a planta me deu. Levar um café de qualidade ao consumidor é uma questão de respeito. A DO mostra que o meu café foi feito com ética, com sustentabilidade", defende.

Cafeicultores da terceira onda saíram da fazenda para integrar circuitos cosmopolitas e ter maior contato com o mercado final. São atores fundamentais para que o melhor café que o Brasil é capaz de produzir não seja um privilégio de consumo para estrangeiros. "O cenário está em transformação. Temos trabalhado muito junto a torrefadores brasileiros, que vêm buscando cafés melhores. O consumidor também está mais exigente. É uma questão cultural que, felizmente, está mudando no país", afirma. Cafeterias principalmente de Curitiba, Brasília e São Paulo têm se especializado em oferecer cafés premium do Brasil. 

Gustavo Ribeiro acredita que o controle da origem ajuda a conectar consumidor, cafeterias e produtor

AUTORAL - Novos gestores dão direções inovadoras para negócios familiares. Gustavo Ribeiro herdou do pai, Lázaro Ribeiro, a responsabilidade de gerenciar as atividades da Fazenda Congonhas, próxima a Patrocínio. 

O Bourbon Amarelo da propriedade chegou a tal ponto de excelência que é comprado às cegas por importadores japoneses. "O comprador tem tanta confiança na nossa qualidade que faz encomendas futuras sem nem provar o café. Isso é a DO. É um orgulho para nós fazer um café de origem", explica. 

Aos 30 anos, o jovem cafeicultor também acredita que o controle da origem ajuda a conectar consumidor, cafeterias e produtor. Para isso, os cafeicultores lançaram marca própria do café da Região do Cerrado Mineiro, o Dulcerrado. Baristas e produtores escolhem, juntos, os melhores lotes da produção para fabricar o café. Periodicamente, a marca lança o que chama de Café Autoral, em que uma fazenda ganha edição especial, single origin. O de outubro foi da Fazenda Congonhas. "É uma maneira de reconhecer, incentivar o produtor. Estamos numa busca constante pela melhoria da qualidade", garante Ribeiro.  

 A inovação não passa despercebida pela velha guarda. "Eu sou desses que estufo o peito para dizer que todo café meu é bom. Mas essa meninada está fazendo coisas incríveis. Eles sabem exatamente qual pedaço da fazenda produz o melhor café, estão trazendo muita inovação na produção. Isso é ótimo", comemora Ricardo Bartholo, presidente da Expocaccer. 

O movimento é o que faz com que muita gente aposte que a 4ª onda do café nasça no Brasil. "O foco em alta qualidade, na marca e no mercado, na conexão entre quem produz, quem torra e quem consome é novo e muito forte aqui. Há uma mudança em curso e a nova onda do café pode ter origem no Brasil", aposta Tarabal, da Federação. Tomara.

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