O vinho do Vale

Vale dos Vinhedos é a primeira indicação geográfica brasileira e um exemplo de como o instrumento tem um papel importante no desenvolvimento local

O astrônomo italiano Galileu Galilei costumava dizer que vinho é a luz do sol retida pela água. O poeta iraniano Rumi era, digamos, mais incisivo: ou me dê mais vinho ou me deixe em paz, dizia. A escritora inglesa Virgínia Woolf descreveu a linguagem como o vinho nos lábios. Para o brasileiro Flávio Pizzato, vinho é geografia. É por causa da geografia e da relação centenária do homem com a uva no Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, que os vinhos produzidos lá foram a primeira indicação geográfica brasileira.

A HISTÓRIA É LONGA  - Poucas invenções são tão entrelaçadas às mãos do criador e à terra onde nascem e poucas se misturam tanto à história da humanidade como o vinho. Com o Vale dos Vinhedos, não é diferente. A arte de fazer vinhos brasileiros foi escrita com a tinta da imigração.

O ano era 1875. Milhares de italianos cruzaram o Atlântico para encontrar na Serra Gaúcha paisagens muito semelhantes às suas origens. Vinham principalmente da Lombardia, Tirol e Vêneto. O ciclo imperial de imigração de Dom Pedro II abrira os portos para europeus num esforço de povoar áreas desabitadas, incluindo o Rio Grande do Sul. Até 1914, acredita-se que 84 mil italianos se instalaram no estado. Mais do que pessoas em movimento, imigrações transferem modos de viver. O Vale dos Vinhedos, que só foi assim chamado mais de 100 anos depois, é equação perfeita da cultura italiana em solo gaúcho.

Não foi a primeira tentativa de plantar uvas na região. Nos idos de 1600, jesuítas portugueses trouxeram videiras espanholas. A viticultura desapareceu junto com os padres após a chegada dos bandeirantes. Um século mais tarde, portugueses tentaram novamente, desta vez com vinhas de origem lusitana, mas elas não se adaptaram ao clima. As primeiras videiras de fato produtivas eram de origem americana, do tipo Isabel, e foram cultivadas por imigrantes alemães.

Com base nessa experiência, os italianos conseguiram reproduzir no Brasil o costume de criar uvas. A princípio, para subsistência e comercialização. Os vinhos só eram feitos para consumo próprio. Foi assim por longos anos, até mais ou menos a década de 1980, com a profissionalização de vinícolas maiores, como a Miolo e a Casa Valduga. 

“Quando o vinho é associado ao lugar onde ele é feito, à sua origem, muda tudo. Porque vinho é geografia, é paisagem, são pessoas, é o solo, o clima”, diz Flávio Pizzato

SAFRA 1990 - A abertura do mercado para importações na década de 1990 foi tanto um baque quanto uma alavanca para o vinho brasileiro. “Houve um boom das vinícolas familiares por aqui. Elas surgiram como alternativas para as propriedades que tradicionalmente plantavam uvas para revender às cooperativas e estavam sendo afetadas pela crise”, detalha Flávio Pizzato, da Pizzato vinhos.

Foi assim na propriedade da família dele, que, após 30 anos de produção de fruta, passou a mirar na produção de vinhos em 1999. Os Pizzato chegaram no Rio Grande do Sul durante o ciclo imigratório do fim do século XIX. Com saudade da uva e do vinho, o bizavô de Flávio, Roldon Pizzato, iniciou o cultivo em solo gaúcho. Foi um dos fundadores da Cooperativa Aurora. Dizem os boatos que ele era fornecedor de vinho para o hospital da região. "Os médicos recomendavam como fortificante", relembra Flávio.

Outros dois fatores contribuíram para a proliferação de vinícolas. As grandes modernizaram a produção e o vinho brasileiro deu um salto, atraindo atenção internacional. A década de 1990 também marcou o começo do flerte do paladar brasileiro com o vinho em meio ao que ficou conhecido como paradoxo francês, em que cientistas discutiam o papel benéfico do vinho tinto na saúde de um povo que, tradicionalmente, consome muita gordura.

NOTAS DE NAPA VALLEY  - A importância de criar um ecossitema dedicado ao vinho ficou evidente diante do sucesso extraordinário do Napa Valley, polo viniviticultor da Califórnia, nos Estados Unidos. O Napa é um divisor de águas para a explosão de vinhos do Mundo Novo e conquistou seu lugar no mapa depois que o Cabernet Sauvignon da Stag's Leap, de Warren Winiarski, desbancou concorrentes franceses de Bordeaux e Borgonha - celeiros de rótulos centenários - em prova cega na principal degustação de vinhos da França, em 1976. O caso ficou conhecido como O Julgamento de Paris e mudou radicalmente a visão que o mundo e os próprios americanos tinham do vinho californiano.

Numa visita ao Napa Valley, os produtores brasileiros, liderados por vinícolas tradicionais - Miolo, Casa Valduga, Dom Cândido, Dom Laurindo - se deram conta da necessidade de investir no fortalecimento da identidade do Vale dos Vinhedos, promovendo o enoturismo e trabalhando a reputação do vinho de lá. Eis que entra em cena a indicação geográfica.

Ronaldo Zorzi: "tínhamos e ainda temos um problema de imagem. Isso está mudando, é um processo gradual, mas muita gente hesita em consumir o nosso vinho por desconhecer a qualidade do que fazemos"

VINHO HARMONIZA COM ORIGEM  - Eles sabiam que o Vale fazia coisa boa. Nem sempre foi fina bebida, é verdade. Mas o tempo, como sempre, melhorou o vinho. O problema é que o consumidor brasileiro, em geral, não sabia. Ou não queria saber.

O reconhecimento da qualidade do vinho da região foi uma busca coletiva, que começou a se estruturar oficialmente em 1995, com a fundação da Associação de Produtores de Vinho Fino do Vale dos Vinhedos (Aprovale). No ano seguinte, com a aprovação da Lei de Propriedade Industrial (LPI) e a estreia da legislação brasileira sobre indicação geográfica, o movimento ganhou fôlego. No ano 2000, a associação entrou com pedido de Indicação de Procedência para vinhos tintos, brancos e espumantes da região. O registro veio dois anos depois, e o Vale dos Vinhedos se tornou a primeira indicação geográfica brasileira. Quem vive na região se lembra das provas e concursos que se seguiram à conquista, com mais 60 rótulos com Indicação de Procedência disputando para ver quem era o melhor.

Mas não bastava. No mundo milenar e competitivo do vinho, origem e exclusividade importam. Muito. A Denominação de Origem dos vinhos e espumantes serviria de prova para o mercado, sobretudo o nacional, que o produto brasileiro tem qualidade. Ainda que em concursos e listas internacionais, os rótulos brasileiros pontuassem bem (e cada vez melhor, diga-se de passagem), chamando a atenção de compradores estrangeiros, o Brasil teimava em associar vinho nacional à baixa qualidade.

“Tínhamos e ainda temos um problema de imagem. Isso está mudando, é um processo gradual, mas muita gente hesita em consumir o nosso vinho por desconhecer a qualidade do que fazemos. Ainda escuto muita gente dizer, depois de um gole: ‘nossa, não sabia que no Brasil tem vinho bom assim’. A Denominação de Origem é uma garantia de identidade e de qualidade que você dá ao consumidor”, acredita Ronaldo Zorzi, enólogo e um dos donos da vinícola Peculiare.

A DO saiu do papel em 2012. A Aprovale conseguiu demonstrar que as uvas Merlot e Chardonnay cultivadas no perímetro do Vale dos Vinhedos têm características únicas, inigualáveis

"Essas espécies se adaptaram muito bem ao nosso ambiente, têm maturação precoce e conseguimos encontrar o melhor manejo possível. Então, além de tudo, temos um padrão de qualidade constante", explica Lucas Simões, enólogo da Casa Valduga.

 A jovem Peculiare de Zorzi, com apenas 16 anos de existência, curiosamente, ostenta a primeira garrafa de um vinho brasileiro DO. “Também não sabia. Achava que cada vinícola tinha sua 001. Só descobri depois que não”, relembra Zorzi, sorrindo.

MENOS É MAIS - As regras para designar uma Denominação de Origem são bastante rígidas. Só é permitido utilizar uvas cultivadas dentro dos limites do Vale e elas devem ser plantadas exclusivamente em espaldeiras, de maneira a crescer no sentido vertical.

Vinhos tintos devem ter ao menos 60% de composição Merlot. As únicas variedades que podem fazer composições - ou assemblages - são Cabernet Sauvignon, Cabertnet Franc e Tannat. No caso dos vinhos brancos, a proporção é de, no mínimo, 60% de uvas Chardonnay e a combinação só é possível com o Riesling Itálico.

Para espumantes, a regra é Chardonnay e/ou Pinot Noir em pelo menos 60% da composição, com a possibilidade de uso do Riesling Itálico. Somente as bebidas elaboradas pelo método tradicional, com fermentação natural na própria garrafa, são aceitos na régua DO. Das 23 vinícolas associadas à Aprovale, 10 têm rótulos com a Denominação de Origem.

PECULIAR - No sopé de um morro de uvas, a pequena Peculiare é a materialização do imaginário comum sobre o que é uma vinícola. Fundada há menos de duas décadas como produtora de vinho, a propriedade tem nas costas 100 anos de produção de uva em terreno acidentado e desafiador. Fazer mais com o mesmo foi uma decisão da nova geração dos descendentes de italianos, Ronaldo e Ramona Zorzi. “Buscamos alternativas para agregar valor ao que já produzíamos”, conta Ronaldo.

Não interessa muito à família Zorzi dar passos maiores que a colheita. A vinícola produz, em média, de 20 a 30 mil garrafas por ano e o foco é qualidade. O vinho DO que está no mercado atualmente é da excelente safra 2012, da qual 2 mil unidades saíram da Peculiare. “DOs precisam de safras excepcionais. Em 2018, encaminhei mais de 4 mil litros para D.O. Aos poucos, a gente vai aumentando”, explica Ronaldo.

O aumento do fluxo de turistas e também do consumo de vinhos incentivou a família a diversificar os negócios. O mezanino do salão de atendimento aos clientes virou uma restaurante que propõe harmonização da carta de vinhos com releituras modernas de práticos típicos da região e, em breve, a propriedade abrirá a agenda para os primeiros hóspedes da nova pousada construída na propriedade. “As pessoas vêm atrás do vinho, mas vivem uma experiência”, ele resume. 

TIPO EXPORTAÇÃO  - Dona do maior número de vinhos brasileiros com Denominação de Origem, com 8 linhas chanceladas, a Pizzato exporta vinho para Bordeaux. Isso mesmo, o berço do tinto francês aprecia o sabor brasileiro. Ingleses, alemães, canadenses, americanos e chineses também sacam rolhas da vinícola ligeiramente isolada na ponta oeste do Vale dos Vinhedos. O cenário compensa a esticada na viagem. Mesmo fora do coração do Vale, tem dias que não cabe todo mundo que quer entrar. 

Se deixar, Flávio Pizzato, atual head da vinícola, fala sobre vinho e a história do surgimento do Vale dos Vinhedos horas a fio. É fácil, quando ele explica, entender por que sua propriedade abraçou a causa da indicação geográfica. “Você tem Cabernet e Chardonnay do mundo todo. Mas quando o vinho é associado ao lugar onde ele é feito, à sua origem, muda tudo. Porque vinho é geografia, é paisagem, são pessoas, é o solo, o clima.” Fácil. 

Mais difícil é o processo de aculturamento sobre o que representa uma indicação geográfica, sobretudo no que os especialistas chamam de Mundo Novo do vinho – Brasil, Estados Unidos, Austrália, África do Sul e por aí vai. “As marcas geográficas não ecoam aqui como na Europa e para regiões europeias. ‘Vou tomar um Bordeaux, um Barolo’, você diz. Ninguém fala a variedade. O vinho não está na nossa construção histórica, como a cachaça, por exemplo. Então é um processo lento, mas em curso”, acredita. 

Curso que passa pela inclusão do vinho no cotidiano brasileiro. Segundo o Instituto Brasileiro do Vinho, o Brasil tem hoje 30 milhões de consumidores de vinho. O volume médio ainda é baixo, cerca de 2 litros por pessoa ao ano, bastante inferior aos argentinos, por exemplo, que têm consumo per capita superior a 23 litros por ano. Mas só entre 2014 e 2016, o consumo brasileiro aumentou 15%. 

Não vale o desgaste entrar na discussão de como a indústria de vinhos finos brasileira não disfruta de qualquer incentivo, além da recente possibilidade de inclusão no Simples Nacional, e perde competitividade em relação aos concorrentes importados em função da carga tributária (que chega a estapafúrdios 67% só para a comercialização dentro do Brasil, a depender do estado de destino). 

O vinho do Vale, por enquanto, vai sendo bebido in loco. “O enoturismo tem um papel central no conhecimento do vinho brasileiro. As pessoas vêm aqui conhecer e acabam se encantando pela região. E pelo vinho”, resume Pizzato. 

No caso do Vale dos Vinhedos, os benefícios foram colhidos por outros produtores além do perímetro protegido. O reconhecimento incentivou a inovação e a melhoria de qualidade de outras zonas viticultoras gaúchas

EFEITO DOMINÓ  - Um estudo recente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estudou o impacto da indicação geográfica em 10 países diferentes, sendo o Brasil representado pelo case do Vale dos Vinhedos. Em quase todas as regiões reconhecidas, a IG implicou em melhor remuneração ao produtor, maior valorização da criação local e um efeito dominó de desenvolvimento.

No caso do Vale dos Vinhedos, os benefícios foram colhidos por outros produtores além do perímetro protegido. O reconhecimento incentivou a inovação, a melhoria de qualidade de outras zonas viticultoras gaúchas, como Pinto Bandeira - que também correu atrás da sua Indicação de Procedência e agora quer ser DO - , Encruzilhada do Sul e Caxias do Sul, como o surgimento de novas zonas em outros cantos do Brasil, como o Vale do São Francisco, em Pernambuco; o Planalto Catarinense e mesmo o Cerrado de Goiás.

PÉ DE TURISTA - Do imigrante, veio o hábito. Do hábito fez-se o vinho. Do vinho, um negócio. Do negócio, outro negócio. É difícil saber se foi o turismo que turbinou o vinho ou se foi o vinho que atraiu o turismo. A realidade é que hoje o Vale dos Vinhedos é um verdadeiro ímã de turistas do Brasil inteiro, atraindo mais de 415 mil pessoas por ano.  

Indiscutivelmente, a Casa Valduga é um dos pilares do vinho brasileiro. Apesar da fundação centenária, datada de 1875, ano de estreia da imigração italiana na Serra Gaúcha, o foco na produção e venda de vinhos finos não volta no tempo mais do que 40, 45 anos. A retrospectiva de um dos ícones da vitivinografia brasileira dá ideia do quanto a indústria nacional é jovem no contexto milenar do vinho.  Por isso mesmo, a trajetória da Valduga é tão impressionante.  

Do total de turistas que chegam ao vale, pelo menos 150 mil passam pelo complexo da Casa Valduga. Além de ser a maior cave de vinhos da América Latina, com capacidade para armazenar mais de 6 milhões de garrafas, a Casa Valduga tem um importante papel na educação do turista.

Na matriz, o visitante conhece a história da família, a plantação, o modo de preparo, um pouco sobre a indicação geográfica e muito sobre a qualidade do produto nacional. "Aqui, temos o desafio gratificante de quebrar paradigmas. Você só sabe se um vinho é bom depois de prová-lo. O nosso é bom, é muito bom", garante Lucas Simões, enólogo da Casa Valduga. Em maio deste, o Leopoldina Gran Chardonnay DO 2017 levou a medalha dourada no concurso francês Chardonnay du Monde, que seleciona as melhores bebidas do mundo com a uva. O Vale é de ouro. 

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