Esperança, resistência e engenharia: crônica de um festival de robótica

Os poderes da robótica educacional abrem os caminhos para uma geração de brasileiros que quer uma vida melhor

Faz um dia de verão inclemente em Brasília. Não há testas secas no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, onde pouco mais de 2 mil estudantes de tudo quanto é canto do país buscam o lugar mais alto do podium nas quatro modalidades de competições de robótica do Festival SESI de Educação. Ainda assim, um ou outro adolescente passa de casaco. Mistérios. 


Curitibanos desconcertados com um calor de mais de 30 °C despertam compaixão, não surpresa. Mato-grossenses nada têm a dizer e para quem veio do Tocantins, o tempo tá igual. O brasiliense só se conforta na certeza de que a chapa realmente esquentou quando uma roraimense, acostumada a um dos climas mais quentes do Brasil, reclama que tá demais. A pintura do rosto derreteu de leve.


Temperatura nenhuma vai tirar o cocar crescente da cabeça de Gardênia Cavalcante, gestora do SESI Roraima. O adereço recebe novas partes a cada reconhecimento arrematado pelos estudantes do estado. “Cada cor homenageia um time. Nesse ano, acrescentei as cordas e mais uma leva de penas aqui em cima”, detalha.

Azul, amarelo e vermelho representam os quatro grupos de Roraima nas mesas da FIRST LEGO League Challenge (FLLC) em 2024: Macunaíma, Estrela do Norte, Core Tech e I’Robot. 

Quando a robótica é sobre ter esperança

A simultaneidade de eventos faz o pit do Team ProdiXy destoar no corredor da FIRST Robotics Competition (FRC). Única representante do Amazonas na modalidade, a equipe de São José do Operário, região metropolitana de Manaus, resolve de tudo um pouco antes de entrar na arena de testes. Um dedicado mecânico se vira, agachado e um tanto espremido, na manutenção do robô.  

Numa esquina, o técnico passa orientações a dois ou três alunos, quem sabe os pilotos. Na outra, o responsável pela elétrica descansa, seca o suor e explica as tarefas que o robô desenhado e construído por eles em duas semanas precisa cumprir na prova.   

A mesa exibe delícias e belezas típicas do rico Amazonas: saquinhos de farinha de Uarini (ei, já contamos essa história), bombom de cupuaçu, pulseira de palha indígena.  

Jovem menina parda, de cabelos compridos e cacheados, usa blusa vermelha e óculos de grau

Cabe à simpática Ana Silva e seus 17 anos explicar que são presentes para colegas de outras equipes e visitantes. Os brindes se tornam secundários – uma vez assegurados, claro - quando ela começa a contar do trabalho feito por eles para levar leitura e oficinas de robótica às populações ribeirinhas.  

Contribuir com a comunidade é premissa de qualquer equipe com pretensões na robótica. A questão é que, olhando para o outro, quem muda são eles. 

“A robótica me deu esperança. Entendi que o mundo pode ser melhor por meio das nossas ações. A minha vida mudou completamente”, diz Ana.

É o primeiro ano dela na ProdiXy, inscrita na modalidade mais antiga e também a mais complexa, onde os robôs chegam a 1,5 metro de altura e pesam mais de 50 quilos. Ali, entre cabos, cálculos e peças, ficou claro que o sonho de cursar medicina nunca foi realmente dela. “Vou ser engenheira. Me achei nisso, é o que eu quero fazer.” 

A solução pode estar num roll-on 

Na parede de fundo do pit da XMachine, o que dá contorno ao mapa da Bahia são post-its com recados de quem passou pelas atividades de promoção da robótica organizadas pela equipe de FIRST Tech Challenge baseada em Salvador.

Foi um dia de longa espera para os competidores. Ajustes de última hora atrasaram o cronograma. “Tudo se resolve com um enforca-gato. Se tem uma coisa que não pode faltar na minha vida é enforca-gato", garante Zurlane Ribeiro, engenheira do time.  

Enforca-gato é como ela (e muita gente, pra descoberta desta que escreve) chama as abraçadeiras de plástico usadas para prender basicamente qualquer coisa. O gosto por uma ferramenta tão simples diz muito da engenhosidade de Zurlane.  

Há uns anos, quando entrou para a equipe de FLLC, o rolamento do robô de LEGO quebrou dias antes da Olimpíada Brasileira de Robótica. Ela tentou, mas a solução não apareceu na sala de aula do SESI Candeias. Zurlane foi pra casa.

"A cabeça ficou procurando uma resposta. Até que tive um estalo. E se eu usasse aquela bolinha do desodorante? Sabe, do roll-on?", relembra. Funcionou demais.

Jovem mulher parda de cabelos cacheados loiros usa óculos de grau e um óculos de proteção na cabeça. Ela veste uma camiseta azul e preta e segura um robô

Aos 17 anos, ela fala em equidade sem precisar ser perguntada. "Como é bom saber que eu posso fazer o que eu quiser, que não tem isso de coisa de homem e coisa de mulher. É aqui que eu me faço, tenho muito orgulho de ser engenheira na equipe. Me dê um problema, eu vou gostar." A robótica, diz ela, mostrou que tudo é lugar de mulher. Do total de competidores do Festival em 2024, elas somam 45%.  


Curiosamente, depois da FLLC, em que há mais meninas que meninos, a categoria com maior paridade, quase meio a meio, é a F1 in Schools, iniciativa educacional da Fórmula 1, que não tem pilotas em um grandprix desde o século passado.


Apenas duas mulheres, ambas italianas, participaram de corridas oficiais da Fórmula 1: Maria Theresa de Filippis correu pela Maserati na temporada 1958-59; e Lella Lombardi, que defendeu a Williams entre 1974 e 1976. 

Por enquanto, Lewis Hamilton senta no topo de um reino que nunca teve rainha. Por enquanto.

Acreditar é um ato de resistência

Uma realidade muito mais difícil desafia a formação de equipes de robótica em escolas públicas. Faltam coisas importantes para levar a fantástica ferramenta de educação aos quase 44 milhões de brasileiros matriculados na rede mantida pelo Estado: dinheiro, incentivo, estrutura.


Então, quando times como o Roosters, do Colégio Estadual Padre Cláudio Morelli, de Curitiba (PR), garantem uma vaga no torneio nacional de FRC, você sabe que por trás tem pessoas que não vão desistir diante de tanto senão. Afinal, não se trata de capacidade, mas de ter as oportunidades restritas porque as condições são desiguais.  


Pois bem. Para custear a existência da Roosters, a equipe entra em competições menores em busca de prêmios. "Tem uma que o prêmio é um celular. A gente entra pra ganhar e ganha. Faz rifa e usa o dinheiro pra bancar a equipe", explica Grégory Souza, 16 anos.

O time também corre atrás de patrocínio, como o da gigante Qualcomm, e, mais recentemente, do Manna, que se define como uma "teia de pessoas exponenciais fazendo pesquisa, extensão, ensino e inovação no tema Tecnologias Exponenciais". Captando recursos públicos e privados, a iniciativa toca projetos de incentivo ao desenvolvimento de habilidades sociais e tecnológicas para transformar a sociedade.  

Sem isso, provavelmente Grégory e os companheiros não estariam em Brasília. Ao contrário de anos anteriores, a Secretaria de Educação do Paraná não apoiou finaneiramente a participação da equipe no Festival. A negativa veio faltando pouco menos de dois meses para a competição.  

"A gente ficou triste, mas não desistiu. Quem não conhece isso aqui (a robótica) acha que é uma coisa pequena. Mas a robótica me mostrou que o mundo é muito grande. Ela ajuda a gente a encontrar o caminho. Eu não sabia o meu até chegar aqui", ele diz.

O caminho do Grégory segue rumo à engenharia elétrica, com retornos pra robótica. Quando não for mais competidor, ele quer ser técnico, juiz, anjo, tanto faz. "Vou ficar pra sempre."    

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