Alegre e desigual: o Brasil pelo olhar de um jovem angolano

Pistis Nseka chegou em São Paulo em 2019 com o objetivo de cursar uma pós-graduação em automação no SENAI. Depois de alguns cursos e trabalhos, ele se encontrou em projeto humanitário

Pistis Nseka vê o Brasil com duas faces: o da alegria, da diversidade e das riquezas naturais; e o da desigualdade e discriminação. Ver e sentir na pele o lado menos romantizado, que até então era o que ele tinha contato estando do outro lado do Atlântico, não foi fácil. 

Formado em engenharia eletromecânica, o angolano veio para o país no final de 2019 para se especializar em automação. A escolha foi motivada, em parte, por encantamento, e, em parte, por lógica. Quarto de seis irmãos - dois vivem na França e dois em Portugal -, o jovem buscava um país onde pudesse tomar as próprias decisões e que não o tornasse tão dependente financeiramente da família e de bolsas de estudo.  


“Comecei a pesquisar os lugares em que poderia ter um estudo prático, como na Alemanha, que é referência. Vi vídeos e experiências dos alunos brasileiros que participavam de concursos mundiais e ganhavam [a WorldSkills]. Aí eu descobri o SENAI, que é uma instituição de renome na América Latina. Pensei que era possível ter um estudo de qualidade sem focar só na Europa ou Estados Unidos, pagando metade. Era o melhor custo-benefício, com a facilidade do português”, lembra. 


O clima tropical, outra vantagem e semelhança entre os países, contou na decisão. Nascido no interior do país africano, Pistis passou por cidades de climas bem distintos, o que acabou desencadeando uma asma e algumas crises. Até fixar residência na capital, Luanda, a família fugia dos conflitos armados que perduraram por décadas após a independência de Portugal em 1975 - o Brasil, aliás, foi o primeiro a reconhecer a nação independente. 

Pandemia não interrompeu planos de estudar 

Com um visto de turista e levando, no currículo, vários idiomas (português, inglês, francês e algumas línguas africanas), a graduação e um estágio na hidrelétrica de Cambambe de Kuanza Norte, uma das maiores do país, o engenheiro recém-formado deixou para trás a mãe e um irmão e desembarcou em São Paulo

Veio a pandemia e o jeito foi aproveitar a oferta dos cursos a distância e de menor duração, que lhe garantiram o visto de estudante. Os primeiros foram oferecidos pelo SENAI do Mato Grosso do Sul, de sustentabilidade, meio ambiente, segurança do trabalho e economia circular. 

Com o retorno das aulas presenciais, ele se matriculou em diferentes unidades de São Paulo, como Brás, Mogi das Cruzes e Leopoldina, onde fez cursos de comandos elétricos, elétrica industrial, eletricista instalador e instrumentação. “Muitos engenheiros projetam, mas você coloca no campo e eles não dominam a parte de instalação e manutenção elétrica”, justifica. 

Para se sustentar, Pistis foi atrás de emprego. Trabalhou em grandes e médias empresas de cabos de aço e metais. No início de 2021, conseguiu a vaga para a tão esperada pós-graduação em Indústria 4.0 em uma escola modelo, a de São Caetano. Chegou a frequentar três turmas diferentes, tendo apenas o domingo para descanso.  

Um país de vulnerabilidades 

As coisas caminhavam no rumo certo, mas, diante do preconceito e da pobreza com a qual teve contato, o Brasil retratado nas novelas parecia se distanciar do Brasil real, o que o colocou em um quadro de depressão. 


“Eu admirava a alegria e a cultura do Brasil, mas a imagem que eu tinha era distorcida. Sou uma pessoa sensível, me conscientizei rápido sobre o sofrimento das pessoas. Então eu via os outros em situação de vulnerabilidade, o que me incomoda mesmo, e pensava ‘eu já vi isso em Angola’. Também me chocou o nível de racismo. Uma nação que recebeu tanta gente, era para ser mais receptiva, mas é mais fácil te tratarem bem na Finlândia, que tem muito menos preto, do que aqui”, lamenta.  


Segundo o jovem angolano, o Brasil tem potencial para ser melhor que Estados Unidos, da mesma forma que Angola poderia ser melhor que a África do Sul, porque tem mais recursos. Ele até conseguiu uma bolsa para estudar na Espanha, mas não quis ir. “Não gosto de começar as coisas e não terminar.”  

A determinação e as dificuldades chamaram atenção dos diretores do SENAI, que o contrataram, no meio de 2021, como assistente na área de sistemas de automação para indústrias no Instituto de Tecnologia. Ele ficou nove meses na função e, passeando pelos corredores do prédio, dá para sentir o quanto ele é querido e reconhecido por sua trajetória e competência.

A missão de levar água para comunidades carentes 

Neste ano, Pistis fez contato com a PW Tech, uma startup que desenvolveu um purificador de água leve, portátil e de baixo custo, que torna água contaminada, das chuvas, rios, etc. própria para consumo.  


“Eu não tinha vontade de sair do SENAI, mas o projeto era ambicioso e tem um impacto social com o qual me identifico. Eu olho países que precisam de ajuda humanitária e conecto quem tem o recurso com as ONGs e quem precisa de água potável. Da mesma forma que eu gostaria de ter sido ajudado, quero ajudar as outras pessoas. Tem mil crianças a sorrir por conta de um fundo que eles nem sabem que existem”, orgulha-se. 


Para quem sempre amou a engenharia, o sonho de trabalhar com robôs ficou em stand by por um trabalho que ele encara como missão. Neste mês, o jovem angolano termina a pós-graduação que o trouxe ao Brasil com um trabalho de conclusão sobre o uso da Internet das Coisas (IoT) para sustentabilidade ambiental.  

Com apenas 25 anos, Pistis carrega uma bagagem pesada, de quem já viu e viveu muito, mas um sorriso e a fala leves, de quem acredita ser capaz de ir mais alto. “Cresci muito como profissional e ser humano. As dificuldades me fizeram a pessoa resistente que sou”

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