Brasil precisa deixar professores universitários terem próprio negócio

Em entrevista à Agência CNI de Notícias, o especialista em bioeconomia da Unicamp, Gonçalo Pereira, destaca a importância de haver maior parceria entre empresas e universidades para alavancar a bioeconomia no país

Um dos grandes choques culturais que o professor e pesquisador Gonçalo Pereira, do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ocorreu na década de 1990, quando era estudante de doutorado na Alemanha e soube que seu professor orientador era empresário. Não bastasse isso, descobriu que boa parte dos colegas de turma desenvolviam projetos para a empresa do professor. “Como brasileiro, em uma cultura que impede o  acadêmico de empreender, achei aquela situação absurda”, relata.

Seis anos depois, a empresa do professor, que ficava em uma salinha no campus universitário, passou a valer mais de um bilhão de marcos e gerava renda, receita, impostos e centenas de empregos. “Com o tempo, veio a humildade e raciocinei: a Alemanha é um país desenvolvido e, se eles fazem isso, tem algum sentido”, destaca Pereira, que, em 2001, ajudou a criar a fabricante de etanol de segunda geração Granbio.

Em entrevista à Agência CNI, ele destaca que o Brasil tem grande potencial para ser líder na bioeconomia, modelo que alia desenvolvimento de novos produtos a partir de recursos da biodiversidade e tecnologia 4.0. Mas, sem a aproximação maior de indústrias e a academia, sobretudo com mais inserção de mestres e doutores nas empresas, não será possível grandes avanços. Ele explica que, em países desenvolvidos, é muito comum nas empresas a figura do CSO (Chief Scienc Officer), ou cientista-chefe. “O Brasil tem de aceitar o professor empreendedor”, diz. “Além disso, a universidade não precisa ter a propriedade intelectual, quem tem que ter a propriedade intelectual é a empresa para ela explorar economicamente.”

Segundo Pereira, é preciso senso de urgência em dar esses passos na agenda de bioeconomia, sobretudo neste momento em que o mundo enfrenta a pandemia do coronavírus, aliada à queda no preço do petróleo. “Tudo isso desestrutura economias do mundo inteiro e não temos certeza se essa pandemia será algo isolado ou se sofreremos mais frequentemente com esse tipo de problema, que pode estar associado à mudança do clima”, analisa. “A bioeconomia vem meio que no susto, pressionada por grandes desastres de natureza ambiental, fazendo com que os políticos percebam a necessidade de mudar a gestão do planeta”, destaca Pereira. 

Confira, a seguir, a entrevista. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Qual o potencial do Brasil na bioeconomia?

GONÇALO PEREIRA -
O Brasil tem grande potecial na bioeconomia. Um exemplo nesse sentido é que, na década de 70, com o aumento do preço do petróleo, começamos a produzir etanol. O brasileiro vai em um posto de combustível colocar etanol no carro achando que isso é uma coisa normal. Só o Brasil tem isso. Isso é uma coisa incrível e uma demonstração de que a gente pode produzir em larga escala um produto que é necessário. Então, o Brasil nesse sentido é uma super liderança. Nós mostramos isso. Os Estados Unidos nos acompanharam a ponto de hoje eles serem o maior produtor de etanol do mundo. E, desde a década de 70, o Brasil também desenvolveu tremendamente a sua academia. Hoje as universidades brasileiras têm muito conhecimento de excelência e é um dos grandes produtores de ciência do mundo. Entretanto, a bioeconomia significa olhar a natureza com conhecimento, que está na academia, para gerar novos processos produtivos sustentáveis. Só que falta no Brasil, para se tornar potência em bioeconomia, a indústria se conectar com a academia para desenvolver novos processos produtivos e realmente implementar a bieconomia como um todo.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Quais os principais obstáculos para essa maior aproximação entre empresas e universidades? 
GONÇALO PEREIRA -
Precisamos de uma mudança cultural, que tem que acontecer rapidamente. Por exemplo, hoje em dia os professores das universidades paulistas têm um regime de dedicação integral e exclusiva à docência e à pesquisa. Isso significa o seguinte: eu, como professor, só posso trabalhar para a universidade. Então, se uma empresa me procura para desenvolver pesquisa, vai ter de fazer via universidade, por um processo muito burocrático. E eu, como professor, mesmo que eu tenha descoberto um monte de coisas, o meu benefício econômico com tecnologias que venho desenvolver é pequeno e cheio de complicações. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Como vencer esses entraves?

GONÇALO PEREIRA -
Se a gente começar a ter uma confiança maior, e se os professores, que são a liderança acadêmica, começarem a poder interagir com as empresas e terem suas próprias empresas, como acontecem em muitos países sem aquelas restrições tremendas que existem, tenho certeza absoluta que rapidamente as coisas vão acontecer. E o que que acontece hoje com a indústria? Ela tem dificuldade de se aproximar da academia, ela tem desconfiança porque muitas vezes ela financia uma pesquisa, depois ela tem dificuldade de exercer a propriedade intelectual que é gerada. A universidade não precisa ter a propriedade intelectual, quem tem que ter a propriedade intelectual é a empresa para ela explorar economicamente. Isso é muito confuso e a universidade não entende essa necessidade de que ela tem que ceder a propriedade intelectual e que os ganhos que ela vai ter com isso é indireto. Porque a empresa vai crescer, vai gerar imposto e emprego e é isso que a gente precisa. A gente precisa o mais rapidamente possível simplificar as leis, deixar os professores ficarem ricos se eles tiverem capacidade para isso. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Para reduzir essa desconfiança entre setor empresarial e academina não seria necessário maior diálogo entre eles para que se entenda melhor o papel e as necessidades um do outro? 

GONÇALO PEREIRA -
Sabe uma coisa que falta, que talvez fizesse a conexão com muito mais facilidade? Faltam doutores nas indústrias. Em 2001, eu montei uma empresa. Pedi tempo parcial da universidade e fizemos uma empresa chamada Granbio, uma usina de segunda geração, que produz etanol a partir de bagaço de cana e também criou uma série de novos organismos como leveduras de segunda geração, entre outros. Fui empresário durante quase cinco anos e aí eu consegui perceber a distância que existe entre esses dois mundos e o que falta para conectá-los. Falo sem medo de errar: o que falta nas empresas é a figura dos doutores. Por exemplo, é raríssimo no Brasil uma figura que é muito consagrada em países desenvolvidos que é a figura do cientista-chefe da empresa, o CSO (Chief Scienc Officer). Esse é o cara que está na empresa, é empresário e também é cientista, com mestrado e doutorado. Muitas vezes ele é um professor universitário e a universidade não é para ele uma caixa-preta, um bicho de outro mundo. Então, se as empresas começarem a ter cientistas-chefes, eles que farão a conexão naturalmente entre a academia e as empresas e vão perceber o que a academia tem de importante para poder ajudar as empresas. Além disso, esse tipo de figura é muito econômica porque existe em todas as sociedades os recursos não-reembolsáveis, que geralmente são destinados pelo governo, para o desenvolvimento científico e tecnológico, para pesquisa de alto risco, de retorno improvável, de cada 10, um dá certo. Geralmente esse que dá certo vale por 100. Então, até o acesso a esses recursos não-reembolsáveis, é a figura do cientista que consegue fazer o projeto capaz de captar esse tipo de dinheiro. Falta ao empresariado brasileiro ou às empresas brasileiras essa aproximação, essa apropriação de um corpo científico dentro de sua área de atuação para que esse corpo científico faça essa conexão. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Mas o setor produtivo brasileiro está preparado para absorver mais doutores, levando-se em consideração os elevados custos para se ter esses profissionais em seu quadro? 

GONÇALO PEREIRA -
No Brasil, infelizmente, as empresas mais avançadas em tecnologia são uma espécie de followers, são seguidoras rápidas e não desenvolvem tecnologia dentro da fábrica. O que elas fazem é avaliar onde tem tecnologia, para rapidamente identificar, comprar e licenciar. Infelizmente, a gente nunca está à frente. O que traz geração de riqueza nos dias de hoje é conhecimento. Você operar em tecnologia existente, dá uma margem, mas pequena. Olha aí a Apple, a Goggle, o Facebook. Veja a história de como essas empresas começaram, a geração de valor que elas tiveram. Elas não operaram tecnologia, elas desenvolveram tecnologia. E de onde elas surgiram? Em todos os casos, de dentro da universidade. Por isso, as empresas têm de contratar doutores. Em um primeiro momento vai ser um incômodo. O doutor é esquisito, cheio de ideia maluca. As empresas têm de contratar doutores para criar linhas de pesquisa, linhas de desenvolvimento tecnológico pra valer. Aí você me pergunta: e vai fazer tudo dentro das empresas? Claro que não, isso é um custo gigantesco. Mas esse doutor tem capacidade de identificar na academia onde estão os equipamentos, os especialistas e a capacitação que interessam para fazer uma rede de pesquisa de baixo custo porque boa parte do custo é bancado pela própria universidade, e isso é papel do Estado.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Temos doutores suficientes para serem absorvidos pelo setor industrial? 

GONÇALO PEREIRA -
Olha a loucura: em comparação com os números internacionais, o Brasil tem um baixo número de doutores por habitante. Mas quando olha o desemprego entre doutores, o Brasil tem o maior do mundo. Por que? Porque os doutores não estão sendo aproveitados no setor produtivo. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - O governo teria de oferecer algum incentivo para que empresas absorvam mais doutores? 

GONÇALO PEREIRA -
Não gosto de nada forçado. Acho que tem de haver incentivos, redução de impostos para o sujeito que contrate um doutor, mas, como diz, não tem vento bom para quem não sabe onde ir. Sabe um exemplo interessante: quando teve a Olimpíada no Brasil, você tinha a figura da autoridade olímpica, que era aquela figura que articulava, estruturava os vários setores. A gente precisa de uma coisa assim, a gente precisa de uma autoridade em bioeconomia porque, no fundo o que está faltando, é articular uma série de ações. Mas isso não será possível com a estrutura que a gente tem hoje, com ministério que não conversa com o outro e atuando cada um apenas com o seu programa. Dá uma olhada nos números de programas em bioeconomia que existem em cada ministério e ninguém se entende. Seria bem interessante termos uma autoridade em bioeconomia, que justamente perpassasse os ministérios e estruturasse os diversos programas de forma associada com a iniciativa privada, com o governo e com a academia para gerar as políticas públicas adequadas, para gerar o norte para a partir daí os atores agirem com liberdade, mas sabendo para onde estão indo. O problema está em a gente se entender politicamente, mas isso nunca é muito fácil. Mas do ponto de vista objetivo as ações que têm de ser tomadas são muito claras. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Isso está relacionado a colocar a bioeconomia entre as prioridades de uma estratégia de país? 

GONÇALO PEREIRA -
Isso. Não se pode depender de um governo que é eleito a cada quatro anos. Falta no Brasil as figuras dos think tankers, que dizer, dos tanques de pensamento. Quando você tem organizações como, por exemplo, a CNI, com orçamento, gestão e projetos de longo prazo, cabe a essas entidades gerarem um plano de país para oferecer ao governo. Infelizmente, os nossos governos têm tido muito pouca capacidade de gerar planos que vão além dos seus anos de eleição. E nenhum país é capaz de se desenvolver com isso.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - A falta de uma política industrial também pode ser um entrave ao desenvolvimento da bioeconomia? 

GONÇALO PEREIRA -
Falta ao Brasil, sem dúvida nenhuma, uma política industrial. Deveria ser uma prioridade que o Brasil estivesse completamente devotado à questão de células combustíveis a etanol, por exemplo, porque isso puxa toda uma cadeia. Ter uma política industrial adequada, em que o país coloca com clareza as coisas que quer alcançar e tendo linhas de financiamento naquela direção vai naturalmente gerando mais cientistas e pesquisadores trabalhando naquela direção estabelecida pela política. Isso, sem abrir mão, de diversos outros pesquisadores que querem pesquisar de forma livre.

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