Por dentro da bioeconomia

Como funcionam os novos negócios baseados em recursos renováveis, que respeitam o meio ambiente e levam inclusão econômica para comunidades desfavorecidas

O país tem 20% da biodiversidade mundial, sendo 15% só na Amazônia

Chocolate com terroir amazônico. Uma experiência exótica é o que promete César de Mendes, engenheiro químico e fundador da empresa Chocolates De Mendes, sediada em Santa Bárbara do Pará, na região metropolitana de Belém. O cacau nativo utilizado pela fábrica é colhido por ribeirinhos e índios e tem sido degustado por paladares em outros estados e também no exterior. O principal segredo da iguaria, contudo, não está na receita ou na cozinha, mas na parceria entre a empresa e as comunidades locais.

César começou a atuar na área em 1990, como consultor em engenharia de alimentos para empresas sediadas na capital paraense. Em 2005, durante um trabalho em Medicilândia, município do interior do estado, conheceu produtores de cacau e chocolate. Então, surgiu a ideia de fundar uma cooperativa destinada à produção de chocolate.

O projeto, contudo, não deu certo. Segundo ele, os agricultores começaram a desistir durante o processo de regulamentação da empresa. “Mesmo assim, não abandonei a ideia. Levei tudo para Belém e lá comecei a vender produtos de chocolate”, relata.

Foi nessa época que ele abriu uma pequena empresa que trabalhava somente com cacau nativo e produzido em comunidades indígenas, caboclas, quilombolas e de agricultura familiar local. Por meio de parcerias, a empresa oferece treinamento para a produção de cacau, da colheita à secagem, passando pelo processo de seleção das frutas e pela fermentação. No interior da Amazônia, a De Mendes busca variedades novas, escondidas na mata, para criar chocolates com sabores diferentes. 

Durante uma expedição para encontrar frutos, em 2014, César descobriu o cacau do Jari. A viagem até a região, localizada na divisa entre Pará e Amapá, dura três dias inteiros. “Primeiro eu pego um avião, depois carro, barco, carro de novo, barco por mais um trecho e caminho durante um dia a pé no meio da floresta”, explica o empresário. A variedade de cacau foi entregue para análise na Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), identificada como inédita e catalogada. Um ano depois, virou chocolate na De Mendes.

O chocolate do Jari já participou de exposições na França, Rússia e Itália. Atualmente, pode ser comprado em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Florianópolis, mas também em Nova York, Frankfurt, Paris e Londres. “Nós estávamos tentando imitar o chocolate belga, o francês, o suíço, quando na verdade o consumidor estrangeiro tinha curiosidade em experimentar um chocolate exótico, que fosse só da Amazônia”, explica César.

Chocolates raros da Amazônia, como o Jari, produzido por César de Mendes no Pará, têm chegado a consumidores de Nova York, Frankfurt, Paris e Londres

Nascido no Amapá, o engenheiro conviveu desde cedo com árvores cacaueiras nos quintais das casas em que morou. O cacau é uma espécie endêmica da Amazônia e da América Central e pode ser encontrado com facilidade na região.

Negócios como o De Mendes vêm dando impulso à bioeconomia, conjunto de atividades que aliam recursos naturais com tecnologia para responder às novas demandas de conservação ambiental, dos negócios e das relações de consumo.

Duas características diferenciam as empresas desse segmento de outros setores. A primeira é o uso da biotecnologia, com conhecimentos científicos de ponta que geram produtividade. A segunda é o uso de uma matriz sustentável a longo prazo, com recursos renováveis e limpos e, sempre que possível, em parceria com comunidades locais.

Recursos renováveis

“A bioeconomia se baseia na ciência e na tecnologia para obter uma série de produtos a partir de matéria-prima de origem biológica, que é renovável”, explica Alexandre Alonso, chefe-geral da Embrapa Agroenergia. Segundo ele, o conceito abrange biocombustíveis, produtos químicos de base biológica, cosméticos, fibras, bioplásticos e alimentos. “Com isso, podemos fazer uma substituição dos produtos visando a uma economia de baixo carbono usando a matéria-prima e a tecnologia adequadas”, diz.

Foi esse conceito que motivou a empresária Magda Cristina Gomes, diretora do Grupo da Família, que atua em Palmas com reciclagem de produtos plásticos. A empresa está há 26 anos no mercado, mas em 2015 fez um importante ajuste em sua produção quando começou a reciclar sua própria matéria-prima para a produção de cordas. Só então, atingiu a marca de 125 toneladas produzidas ao ano.

“Nossa empresa recicla embalagens plásticas e faz com que esse material volte ao processo produtivo. Produzimos cordas para varal, cordas para redes de futebol, vôlei e futsal, cordas para redes de pesca e cordas para vigo de estofados”, conta a empresária. 

A bioeconomia também tem impactos positivos sobre a imagem internacional do Brasil, onde está 20% da biodiversidade mundial

Para produzir cordas 100% recicladas, a fábrica utiliza embalagens de Polietileno de Alta Densidade (PEAD), encontradas facilmente no ambiente doméstico, como em embalagens de detergente, amaciante, água sanitária, shampoo, condicionador e higiene pessoal. É também comumente utilizado nas embalagens de fertilizantes foliares.

A indústria contribui para o sustento indireto de cerca de 100 pessoas, pois adquire materiais de PEAD de cooperativas, associações e catadores informais. “Ao invés de utilizarmos aquela matéria-prima virgem extraída do petróleo, nós utilizamos uma outra opção sustentável que é a reciclagem”, explica a diretora da empresa. 

Também do Tocantins, a Neogyp é uma startup que desenvolveu tecnologia para produção de tijolos de gesso ultrarresistentes a partir de sobras de gesso ou de gesso mineral. Franknei Santos de Souza, cofundador da empresa, explica que o sistema desenvolvido utiliza tecnologia de base científica que consiste em alvenaria modular e estrutural de gesso de alta resistência mecânica e à umidade.

"Ela foi desenvolvida inicialmente pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Universidade Federal de São Carlos, nos departamentos de física e química", conta Souza.

Segundo ele, essa tecnologia teve uma nova etapa de evolução há quase 20 anos. “Por volta de 2003, nos associamos ao inventor e transformamos essa tecnologia em um produto comercial. Produzimos o equipamento e confeccionamos tudo de forma personalizada para transformar o material em alvenaria, que pode ser usada para construir casas e prédios”, afirma o empresário.

Um dos primeiros projetos foi a construção de uma sala de aula para ensino a distância do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) na cidade de Gurupi (TO). “O reaproveitamento evitou desperdício de material e reduziu muito os restos de obra”, lembra o empreendedor.

Por meio do reaproveitamento de resíduos de gesso, diz Souza, a empresa busca oferecer edificações com eficiência no processo construtivo com potencial de transformar e criar uma nova matriz sustentável para a cadeia de valor da construção civil. Ele considera importante buscar novas tecnologias para a indústria da construção civil, principalmente com o reaproveitamento de materiais que podem ser usados no processo de construção. “Há barreiras tecnológicas e culturais, mas temos conseguido alguns avanços nos últimos anos”, afirma.

Há 18 anos no mercado, a Plastibras, de Cuiabá, surgiu como solução para o destino adequado de embalagens de defensivos agrícolas oriundos das plantações de soja em Mato Grosso, conta o proprietário Adilson Valera. “As embalagens utilizadas nas lavouras retornam num processo de logística reversa até a unidade de fabricação. Essas embalagens chegam prensadas e aqui na empresa nós as processamos, fazemos a resina e produzimos eletrodutos corrugados de drenos de 20 até 200 milímetros”, explica Valera, também diretor da Federação das Indústrias do Estado de Mato Grosso (FIEMT), onde integra o Conselho de Meio Ambiente. 

“A nossa estação de tratamento de afluentes é um sistema de circulação fechada, então é sempre reúso de água; vai e volta, não tem esgoto. Toda água do resíduo é tratada. A sobra da estação de tratamento de afluentes é mandada para incineração”, diz o empresário.

O processo começa com o agricultor fazendo a lavagem das embalagens e entregando o material numa central de recolhimento próxima da propriedade. Após isso, o material é separado, prensado e entregue na Plastibras. Segundo ele, a empresa transforma em produtos finais cerca de 4 mil toneladas de material reciclável por ano.

Biodiversidade brasileira

O gerente-executivo de Meio Ambiente da Cni, Davi Bomtempo, ressalta que o Brasil tem algumas vantagens comparativas para promover a bioeconomia. O país tem 20% da biodiversidade mundial – sendo 15% só na Amazônia –, produção de biomassa a baixo custo, grande quantidade de mão de obra e grande quantidade de área cultivável.

“Cerca de 40% da economia mundial são baseados em produtos da biodiversidade que o Brasil tem. Temos experiências bem-sucedidas na área de bioenergia e biocombustíveis, a exemplo do etanol e do biodiesel. Precisamos transformar essas vantagens comparativas em vantagens competitivas”, defende ele.

Dados do Ministério do Meio Ambiente mostram que a biodiversidade do Brasil é a maior do mundo. A variedade de espécies que se encontram no país inclui cerca de 103 mil espécies animais e 43 mil vegetais, distribuídas em seis biomas terrestres e três ecossistemas marinhos.

Conforme dados do Ministério do Meio Ambiente, 20% do número total de espécies do planeta podem ser encontradas no Brasil. No mundo, o modelo de produção industrial baseado no uso sustentável de recursos biológicos movimenta cerca de € 2 trilhões e gera cerca de 22 milhões de empregos, segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Doutora em gestão da Inovação em Biotecnologia pela Universidade Federal do Amazonas, Katia Andrade Barroncas afirma que “o potencial da biodiversidade é incontestável, porém ainda temos muito a avançar para aproveitarmos isso de maneira mais efetiva e sustentável na geração de riqueza, de postos de trabalho e de renda para a população brasileira”.

Segundo ela, o sucesso da bioeconomia “não depende apenas do processo produtivo das empresas, mas abrange externalidades que envolvem políticas públicas, instrumentos e articulação que possam fazer os desdobramentos necessários para superar os desafios que o país tem”.

No caso do Parque Industrial de Manaus (PIM), diz ela, a dependência de insumos importados pelas indústrias instaladas, hoje de cerca de 65%, poderia ser minimizada com um maior aproveitamento dos insumos regionais e nacionais nos processos produtivos. Um exemplo seria a utilização de biopolímeros na manufatura, em substituição ao plástico tradicional.

“O grande desafio dos biopolímeros, entretanto, é que eles ainda são pouco comercializados no mundo, o que deixa o valor do custo de produção de duas a três vezes maior do que o do plástico convencional”, compara a pesquisadora.

Katia Barroncas diz que o parque industrial manauara já vem usando, entretanto, a fibra de açaí na fabricação de selas de motocicletas, por exemplo. “Temos um enorme potencial e um mercado crescente para a utilização de fitoterápicos e fitocosméticos em escala industrial. O desafio é garantir a disponibilidade do bioativo em quantidade e qualidade para a produção em escala e o uso de tecnologia para o beneficiamento localmente. Não se pode falar em uma matriz bioeconômica sem o desenvolvimento qualificado da cadeia produtiva para garantir a agregação de valor e a sustentabilidade do fornecimento”, argumenta ela.

Para a pesquisadora Luciana Fonseca Moreira, mestre em Agronegócios pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), “o Brasil possui esse diferencial comparativo em relação a diversos outros países, que é a exuberância da biodiversidade, além do agronegócio que já está muito bem estruturado”. Essa seria, segundo ela, a base para fazer o bom uso racional e sustentável e agregar valor.

“O cupuaçu e o babaçu são exemplos dessa biodiversidade que podem gerar matéria-prima não só para a indústria de cosméticos, mas também para outros segmentos industriais que precisam de derivados desses produtos. Já existem algumas aplicações, mas ainda muito tímidas perto do potencial que o país possui”, avalia Luciana.

“Essa biodiversidade é uma riqueza que o país já possui e que pode trazer um impacto financeiro significativo para o nosso PIB. O Brasil, hoje, é um grande exportador de commodities e importador de muitas coisas, como produtos químicos, que poderiam ser produzidos aqui de forma sustentável e utilizando recursos renováveis”, diz ela, autora da dissertação Do campo para a Indústria Química: Oportunidades para o Brasil na bioeconomia mundial, defendida em 2019.

Em artigo publicado neste ano na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências, as pesquisadoras Vanderlan Bolzani e Marilia Valli, integrantes do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA/FAPESP) afirmam que, apesar da abundante diversidade de espécies, o Brasil investe pouco na produção de itens que derivam de substâncias naturais e de alto valor agregado, como remédios.

Segundo o artigo, entre os produtos que podem ser feitos a partir da biodiversidade estão medicamentos, produtos de higiene e fragrâncias.

FONTES RENOVÁVEIS DE ENERGIA NO BRASIL
Etanol e bagaço de cana 39%
Hidráulica 27%
Lenha e carvão vegetal 19%
Biodiesel 4%
Eólica 4%
Solar 0,4%
Outros 8%

Fonte: Resenha Energética Brasileira - Ministério de Minas e Energia (maio/2020)

Reduzir dependência externa

“Precisamos aproveitar esse momento e construir as bases para avançar, já que o Brasil é dos países com maior potencial nessa agenda”, afirma o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade. “Entre as questões mais urgentes estão a construção de uma estrutura de governança, liderada pelo governo com apoio da indústria e da academia, e a elaboração de uma política nacional de bioeconomia”, ressalta Robson Andrade.

Para ele, “essa estrutura deve ter como prioridade a expansão do sistema de inovação voltado à cadeia da biotecnologia, com foco em produtos de maior valor agregado”.

Divulgado em 2018 pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o estudo A bioeconomia brasileira em números mostra que esse modelo de desenvolvimento, cujo valor de vendas foi de US$ 326 bilhões no país em 2016, deverá permitir a redução da poluição, das emissões de gases do efeito estufa e do desperdício da água, preservando a biodiversidade.

Deve, ainda, buscar um sistema econômico mais sustentável, capaz de garantir produção e consumo mais limpos e mais seguros, com base na inovação em tecnologias, por meio da redução, reutilização ou reciclagem dos recursos econômicos.

Um caminho para dar mais agilidade à agenda de bioeconomia no país, segundo o documento, seria destinar parte dos investimentos de pesquisa, desenvolvimento e inovação em cadeias já consolidadas no Brasil, como a de produtos a partir da cana-de-açúcar, do etanol e os de base florestal, como papel e celulose, nas quais o país é dos maiores produtores mundiais. Entretanto, a bioeconomia traz outros atrativos, como a valorização da marca da biodiversidade brasileira e a contribuição com a imagem internacional do país.

Na indústria de cosméticos, um exemplo é a Natura, uma das maiores no mundo dentro do emergente mercado da bioeconomia de alto valor agregado. Desde 2000, a empresa concebe produtos que se diferenciam pelo uso sustentável dos ativos da biodiversidade brasileira. A Natura busca unir, numa mesma cadeia produtiva, a bioeconomia, a biodiversidade e o conhecimento tradicional das comunidades da Amazônia, que estão na matriz de pesquisas de inovação feitas pela empresa em plena floresta.

Usar produtos da Amazônica é também a base dos negócios da Natex, que produz preservativos masculinos a partir do látex extraído de seringais no Acre. Com 103 trabalhadores diretamente contratados e 750 famílias cadastradas para o fornecimento do látex, a empresa produz, mensalmente, cerca de 5 milhões de unidades, vendidas integralmente para o Ministério da Saúde, segundo Emerson Feitoza da Silva, um dos sócios e presidente da indústria, que tem sede em Xapuri e atualmente funciona no formato de Parceria Público Privada (PPP).

“Hoje estamos buscando, junto aos órgãos de controle, a regularização da linha comercial para poder exportar e comercializar nossos preservativos. Atualmente nosso preservativo ainda é de exclusividade do Ministério da Saúde”, diz Emerson Silva. A empresa aguarda a obtenção de licenças de produção comercial para aumentar sua produção mensal em cerca de 3 milhões de unidades.

“Teremos de buscar mercado, mas já temos pré-contratos para distribuição de preservativos nas Regiões Norte e Nordeste”, conta o empreendedor, entusiasmado com os novos passos rumo a uma nova e mais sustentável forma de produzir.

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