O fato de o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, terem assumido em julho as presidências rotativas do Mercosul e do Conselho da União Europeia, respectivamente, poderá contribuir com a conclusão do acordo neste ano, o que permitiria enviar os documentos logo depois para aprovação nos Legislativos dos países integrantes dos dois blocos comerciais. “A atuação da Espanha tradicionalmente favorece o acordo”, avalia Victor do Prado, membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e ex-diretor do conselho e do comitê de negociações comerciais da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Lula recebeu do presidente da Argentina, Alberto Fernández, a presidência temporária do Mercosul no dia 4 de julho, durante a 62ª Cúpula de Chefes de Estado do bloco sul-americano. Segundo Lula, o mundo está cada vez mais complexo e desafiador. “Nenhum país resolverá seus problemas sozinho, nem poderá permanecer alheio aos grandes dilemas da humanidade. Não temos alternativa que não seja a união. Frente à crise climática, é preciso atuar coordenadamente na proteção de nossos biomas e na transição ecológica justa”, discursou o presidente brasileiro no evento.
Lula frisou que o acordo de associação entre Mercosul e União Europeia será uma das prioridades do Brasil na presidência temporária do bloco, que vai até dezembro de 2023. Ele disse, porém, que o texto precisa de revisão, especialmente no que diz respeito às sugestões apresentadas pelos europeus no início do ano.
“Estou comprometido com a conclusão do acordo com a União Europeia, que deve ser equilibrado e assegurar o espaço necessário para a adoção de políticas públicas em prol da integração produtiva e da reindustrialização”, afirmou o presidente, na ocasião.
Por meio do pilar comercial do acordo, cerca de 95% dos bens industriais que, no momento, têm tarifas ao entrar no mercado europeu, terão o imposto de importação reduzido. Segundo levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), cerca de três mil produtos terão tarifa zero ao entrar na UE, imediatamente à entrada em vigor do acordo, e, assim, terão também melhores condições de competir no mercado europeu.
“Desses produtos, praticamente todos são bens da indústria de transformação, sendo que os principais são dos setores de máquinas e equipamentos, produtos químicos, equipamentos elétricos e automotivos”, detalha Constanza Negri, gerente de Comércio e Integração Internacional da CNI.
Esses produtos serão isentos da cobrança da tarifa externa da UE imediatamente após a entrada em vigo do acordo, explica Constanza. O acesso a novos mercados é um dos benefícios que a conclusão do texto, cujas negociações começaram em 1999, trará para o Brasil. Ele também contribuirá para diversificar as exportações brasileiras. Em 2022, apenas dez produtos representaram 61% do total das vendas brasileiras à UE.
O texto ajudará a retomar a relevância da indústria de transformação no comércio bilateral de bens entre o Brasil e a UE, responsável por cerca da metade das exportações brasileiras ao mercado europeu em 2022. Apesar disso, a participação desse setor nas exportações do país aos membros do bloco europeu diminuiu em 19 pontos percentuais (p.p.) desde 2003 – de 68% para 49% – enquanto a indústria extrativa e a agropecuária cresceram 17 p.p. e 2 p.p., respectivamente, na composição das exportações à UE ao longo das duas últimas décadas.
“O acordo do Mercosul com a União Europeia é uma grande oportunidade para a indústria brasileira, que vem perdendo relevância do ponto de vista do processo produtivo”, diz Constanza. Segundo ela, essa é uma tendência mundial, que, no Brasil, ocorre de forma mais acentuada. “Entendemos que chegou o momento de o Brasil ter uma participação mais ativa no comércio internacional. Uma participação com parceiros estratégicos, como a União Europeia, contribuirá com o desenvolvimento econômico e com a retomada das exportações da indústria”, argumenta.
“O acordo do Mercosul com a União Europeia é uma grande oportunidade para a indústria brasileira", destaca Constanza Negri.
Em 2022, conforme dados da CNI, a cada R$ 1 bilhão exportado do Brasil para a UE, foram gerados 21,4 mil empregos. A rede brasileira de acordos preferenciais e de livre-comércio em vigor alcança apenas 8% das importações mundiais de bens. Se o acordo com a União Europeia já estivesse valendo, a participação saltaria para 37%, segundo estimativa da CNI. Com uma população de cerca de 720 milhões de pessoas, os dois blocos representam 20% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, o equivalente a US$ 19,3 trilhões em 2021.
“O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o primeiro entre dois grandes blocos comerciais, é importante para o Brasil e para os europeus porque dá uma sinalização política para os agentes econômicos dos dois lados de uma aproximação que pode gerar ainda mais investimentos”, explica Victor do Prado, do Cebri.
Fernando Pimentel, diretor-superintendente e presidente emérito da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções (Abit), ressalta que os dois blocos têm economias complementares, o que implica grandes oportunidades para o aumento do comércio e dos investimentos mútuos. “A redução de tarifas e barreiras não tarifárias impulsionaria o fluxo de bens, serviços e aporte de capital, beneficiando as empresas e os consumidores de ambas as partes e contribuindo com o crescimento econômico”, avalia.
Além disso, segundo Pimentel, o acordo é uma oportunidade de promover a convergência de normas e padrões comerciais. “Isso é especialmente relevante nos setores agrícola, industrial e de serviços, nos quais há diferenças regulatórias significativas”, avalia. Segundo ele, ao estabelecer regras comuns e harmonizadas, facilita-se o comércio e aumenta-se a segurança jurídica para os investidores. Em 2021, o estoque de investimentos dos países da UE no Brasil somava US$ 327,7 bilhões.
“A conclusão do acordo teria impacto além do aspecto econômico, pois fortaleceria as relações entre as duas regiões e faria do Mercosul um ator relevante no cenário internacional”, reforça Pimentel. Ao mesmo tempo, complementa ele, enviaria um sinal positivo de apoio ao multilateralismo e ao sistema de comércio global num momento em que o protecionismo e as tensões comerciais estão em alta. “O acordo permite aumentar o intercâmbio tecnológico e a relação entre as empresas dos países do bloco”, afirma ele, ressalvando que ainda há alguns entraves a serem resolvidos.
Para finalizar o acordo, que depois terá de ser aprovado pelos Congressos Nacionais dos países da União Europeia e do Mercosul, segundo Pimentel, é importante reconhecer que existem preocupações e obstáculos a serem enfrentados. “Um dos principais desafios é garantir a sustentabilidade ambiental e os direitos humanos. Ambas as regiões devem assegurar que as cláusulas considerem a proteção de biomas, de ecossistemas, da biodiversidade e que respeitem as normas e prerrogativas trabalhistas”, afirma.
Questão ambiental
Victor do Prado (Cebri) diz que o principal obstáculo, atualmente, é a questão ambiental. “O desmatamento é o principal entrave no momento. Essa ainda é uma grande preocupação na Europa, em especial na França”, comenta. Em documento enviado ao Mercosul no primeiro semestre, chamado de side letter, a União Europeia fez exigências adicionais na área de proteção ambiental, que ainda estão sendo analisadas por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, nações que compõem o Mercosul.
Os países do bloco devem indicar aos europeus que não aceitam um compromisso adicional vinculante nem o estabelecimento de sanções relacionadas a um eventual descumprimento de cláusulas ambientais. Na avaliação da CNI, um dos benefícios do acordo entre o Mercosul e a União Europeia é, precisamente, a proteção do meio ambiente. Constanza lembra que o texto reforça compromissos assumidos em instrumentos multilaterais em relação à proteção das condições de trabalho e do meio ambiente.
“O acordo traz um capítulo de desenvolvimento sustentável totalmente inovador e moderno, que reforça o compromisso dos blocos comerciais com políticas que respeitam o meio ambiente”, afirma Constanza. Segundo ela, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deixou claro que as questões climáticas e de proteção do meio ambiente são uma prioridade.
“Para ser bom, o acordo tem que ser equilibrado, tem que respeitar as condições dos dois lados. Quando um dos lados coloca medidas que, dependendo da forma como forem interpretadas, podem ser usadas para fins protecionistas, isso pode causar desequilíbrio”, ressalta Jackson Schneider, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp (Coscex). “O acordo, conceitualmente, é positivo, mas desde 2019, quando foi fechado, surgiram novas questões que precisam ser estruturadas. Medidas com o objetivo de proteção ambiental não podem ser usadas para proteger o mercado europeu”, alerta ele.
Apesar dessas novas questões, Schneider entende que os temas ambientais não prejudicam a implementação da nova política industrial em discussão no governo. “Essa é uma decisão brasileira, soberana e individual, de incentivar aquilo que entende ser importante para a base industrial brasileira, assim como a Europa está fazendo”, afirma. “O Brasil vai cumprir os compromissos assumidos nos fóruns internacionais. Não precisa de pressão lateral de ninguém, muito menos de alguém que quer ser parceiro”, diz.
Lia Valls, pesquisadora associada do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre), avalia que algumas questões no campo ambiental ainda precisam ser esclarecidas, mas defende que, para isso, não é necessário reabrir as negociações do acordo fechado em 2019. Os pontos incluídos no documento da União Europeia no começo do ano, diz, foram fruto de pressão de grupos preocupados com as questões climáticas, mas o Brasil tem um histórico importante de tradição de defesa do meio ambiente.
“É tudo uma questão de interpretação. E a interpretação do governo foi de que a União Europeia pretende aplicar sanções. Há ali alguns compromissos de reduzir o desmatamento num prazo muito curto que não fazem sentido, mas, tendo vontade política, é possível chegar a um acordo. É uma questão de negociar”, argumenta Lia.
Para o Mercosul, diz ela, seria importante fechar o acordo comercial com a União Europeia ainda neste ano. “Não dá para reabrir muita coisa porque há o risco de não fechar o acordo”, afirma.