Da invisibilidade nas ruas ao curso de psicologia: porteiro de 60 anos participa do Enem

José Carlos conquista certificado de conclusão do Ensino Médio na EJA SESI-BA e participa do Enem para realizar sonho de cursar psicologia

José Carlos é porteiro em um condomínio residencial e conciliar o trabalho com os estudos nunca foi uma tarefa fácil

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021 “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” marcou a vida do estudante José Carlos Conceição, de 60 anos, não apenas no dia da realização da prova, como também fez parte da sua adolescência. 

Nascido em Pedrinhas, cidade interiorana de Sergipe, José Carlos sentiu na pele o que é a invisibilidade social. Com poucas recordações da infância, o abandono familiar foi o que ficou em sua memória. Aos 12 anos, a família adotiva o colocou sozinho em um trem, com destino à Bahia.  

Em busca de respostas sobre o seu passado, o sergipano descobriu que o abandono foi ocasionado por questões políticas da época, na tentativa de protegê-lo. Não sente raiva da sua família, mas conta que ainda não desistiu de entender um pouco mais sobre a sua história. 

Dos 12 aos 16 anos, José Carlos morou nas ruas de Salvador. A fome, o frio e os olhares de desprezo foram a sua única companhia nos dias e noites solitárias. “Eu sei o que é dormir na rua, passar por necessidade, ‘tá’ com uma roupa suja, a pessoa passar e fechar o nariz para não sentir o mau cheiro”, declara. 

Sem lápis e caderno, apenas panelas para arear 

Sem certidão de nascimento, é como se a pessoa não existisse. Apenas aos 16 anos, José Carlos nasceu socialmente, quando uma família o recolheu das ruas e emitiu sua certidão de nascimento. “Uma família me encontrou, me deu um nome”, relata. 

Com a mesma idade, ele entrou em uma sala de aula pela primeira vez. Iniciou os estudos por meio do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), mas logo abandonou a escola para trabalhar pelo seu sustento. 


“Eu recordo até hoje, eu trabalhei muito, trabalhando desde cedo para as pessoas de famílias, aquelas coisas todas. Eu ganhei muita experiência de vida, agora o conhecimento acadêmico eu não tive, não foi oportunizada essa parte”, conta.


O primeiro trabalho de José Carlos foi em um restaurante. “Eu trabalhava no restaurante de um chinês, lavava as panelas, aqueles ‘panelão grandão’, dava comida para os cachorros e, depois, é que ele me dava comida”, recorda. 

Apesar de não frequentar a escola, ele relata que sempre foi apaixonado pelo mundo da leitura, amava gibis e, por esforço próprio e com a ajuda de algumas pessoas próximas, aprendeu a ler. 

“Eu nunca deixei de lado as revistinhas que eu gostava de ler. Com aquilo eu sonhava, como até hoje. Isso me trouxe até aqui”. Hoje, os gibis deram espaço aos livros de sociologia, filosofia e psicologia, que o sergipano tanto se encanta. 

O início de um sonho 

José Carlos não lembra em qual série parou na escola e confessa que não ter concluído os estudos gerava nele uma grande frustração. Pensou algumas vezes em dar continuidade, mas sempre desistia do processo educacional. 


“Eu fazia as coisas sempre pela metade. Eu leio bastante, tenho muito conhecimento acumulado de leituras, mas eu não tinha o importante, o canudo, que é o diploma”, destaca. 


Foi quando em maio de 2020, dois amigos o motivaram a retomar os estudos. Realizaram a matrícula na unidade do Serviço Social da Indústria (SESI) Reitor Miguel Calmon (SESI Retiro), na Bahia, e despertaram novamente o sonho dele em concluir a escola. 

Ele conta que a modalidade on-line foi um facilitador nesse processo. José Carlos é porteiro, há 18 anos, em um condomínio residencial em Salvador e conciliar o trabalho com os estudos nunca foi uma tarefa fácil, até conhecer as aulas virtuais. “Sempre levei livro para o trabalho à noite. Às 22 horas está tudo tranquilo, eu sempre fico lendo”, destaca. 

Dedicado aos estudos, ele explica que criou hábitos para adaptar-se ao ensino on-line e aprendeu a disciplinar o seu horário. Após meses de empenho, dedicação e superação, formou-se na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Conta que deu pulos de alegria pela conquista da sua vida.

“Eu dizia comigo todo dia ‘esse sonho não pode adiar’. Pra mim, foi uma realização enquanto pessoa, após quase 60 anos eu entrar, estudar e concluir, porque o importante não foi só eu estudar, foi eu entrar e concluir”, declara. 

Aprovado como inspiração 

José Carlos sempre foi movido por seus sonhos. Agora, quer ir em busca do seu diploma no curso de psicologia e, para isso, realizou a prova do Enem 2021. Foi uma experiência nova e repleta de aprendizados. “Cheguei cedo, fiquei aguardando, a minha ansiedade era para estar na sala, eu tinha que ter certeza que eu estava inscrito, que eu ia participar”, relata. 

Ao olhar o tema da redação, que esse ano tratou da invisibilidade e registro civil, o porteiro lembrou-se do seu passado, do período em que morou nas ruas, sem documentação, lar, sem ser alguém aos olhos da sociedade. 


“Voltei ao passado, algumas lágrimas desceram, fiquei emocionado. Porque teve alguns pontos que eu abordei que eu realmente vivenciei. Tem coisas que ficam gravadas, que você não consegue tirar, por mais que você tente”, conta. 


José Carlos está confiante com o resultado da prova, acredita que atingirá uma boa pontuação. No entanto, desistir não é uma opção. Para ele, o exame é apenas um incentivo para aperfeiçoar os seus conhecimentos, um caminho para identificar as suas dificuldades. 

“Com certeza eu vou conseguir chegar naquilo que eu me propus, que é fazer o curso de psicologia”, ressalta. E não para por aí! Após formar-se em psicologia, ele planeja atuar na área de psicologia clínica e realizar especializações, além de fazer uma segunda graduação em filosofia. “Não existe idade para o conhecimento nem pra se estudar, o que falta na gente, às vezes, é vontade”. 

José Carlos é uma grande inspiração não apenas para os seus amigos, como também a todas as pessoas que abraçam os estudos como uma oportunidade para mudar de vida. “Temos que nos agarrar ao que nos motiva. O meu passado eu olho pelo retrovisor, eu foco lá na frente. Vamos para outros 'Enems' da vida, porque a vida são 'Enems' contínuos”, conclui.

Como estudar no SESI

A rede oferece ainda a EJA Profissionalizante para concluir o ensino médio e um curso de qualificação profissional

Tecnologia, inovação, especialização e facilidade para entrada no mercado de trabalho. O SESI é conhecido por ser uma instituição social privada. Por isso, as vagas disponíveis são para todos os tipos de estudantes. 

Beneficiários, filhos ou dependentes de trabalhadores da indústria vinculados ao SESI têm diversos benefícios e para EJA tem isenção total da matrícula. Estudantes não-beneficiários, alunos que não possuem vínculo com a instituição também podem se inscrever e as condições variam de acordo com o estado.

No começo de 2022, as unidades do SESI abrem as inscrições para todos os alunos. Confira vagas e outras novidades no portal

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