Realizados em abril, os leilões de concessão de 22 aeroportos federais e da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) vão gerar, juntos, investimentos de pelo menos R$ 36 bilhões até 2056. A modernização e a ampliação da capacidade de atendimento dos aeroportos privatizados vão exigir R$ 6 bilhões do setor privado nos próximos 30 anos. Já os investimentos previstos para ampliar os serviços da Cedae serão de, pelo menos, R$ 30 bilhões em 35 anos.
Diante de um cenário de grave aperto fiscal no setor público, que deve continuar nos próximos anos, e de um orçamento quase todo comprometido com despesas obrigatórias, o investimento privado ganha cada vez mais importância para a retomada da economia, afirma o economista Cláudio Frischtak, sócio da Inter.B, consultoria internacional de negócios com sede no Rio de Janeiro. “O setor público está numa crise fiscal que vai permanecer conosco nos próximos anos”, resume.
- Confira a edição de maio da Revista Indústria Brasileira
Frischtak afirma que a restrição fiscal no âmbito federal, assim como em boa parte dos estados e dos municípios, é algo estrutural. Consequentemente, para ele, a ampliação dos investimentos privados em infraestrutura precisa aumentar. Atualmente, em 1,8% do Produto Interno Bruto (PIB) anual, esses investimentos deveriam estar “entre 4% e 5% [do PIB] ao ano”, e isso só pode ocorrer via setor privado, defende o economista. “Desde que você esteja transferindo obrigações de investimento e modernização para o setor privado, nesse sentido estrito, é um sucesso”, diz.
Além de atrair recursos estrangeiros e estimular a atividade econômica, incluindo a geração de novos empregos, os investimentos do setor privado por meio de concessões públicas, da abertura de capital de empresas federais ou de privatizações trazem recursos adicionais para o caixa dos governos dos três entes da Federação. A venda dos aeroportos federais, por exemplo, gerou uma receita de R$ 3,3 bilhões por meio da outorga, que é uma autorização dada ao setor privado para explorar a concessão pública.
Fernando Faria, sócio de infraestrutura da consultoria KPMG, afirma que o investimento privado é muito importante por várias razões.
“Primeiro, o déficit de investimento é muito significativo. O privado tem um papel muito importante nesse sentido. O próprio déficit fiscal também limita a participação do setor público nesses projetos”, explica ele.
No Rio de Janeiro, que teve de renegociar suas dívidas com o governo federal em 2017, a venda da Cedae gerou uma receita de R$ 10,6 bilhões ao governo estadual. Parte desses recursos será obrigatoriamente investida em projetos estaduais de despoluição, o que beneficiará toda a população e estimulará a economia fluminense. Atualmente, mais de um milhão de famílias ainda não têm acesso a abastecimento de água e mais de 60% do esgoto produzido no estado não é tratado.
A estimativa do Ministério de Desenvolvimento Regional é que, com a concessão, sejam atendidos 13 milhões de pessoas com esgoto e água tratada. Além disso, conforme o Ministério, pelo menos R$ 1,86 bilhão dos investimentos previstos deverá ser alocado na melhoria dos serviços em favelas. Nos primeiros cinco anos da concessão, deverão ser investidos R$ 12 bilhões na universalização dos serviços de infraestrutura de água e esgoto. Em 12 anos, os investimentos obrigatórios somarão R$ 25 bilhões.
Ampliar o saneamento básico
Wagner Cardoso, gerente-executivo de Infraestrutura da Confederação Nacional da Indústria (CNI), lembra que esses investimentos demandam uma cadeia produtiva longa. “Isso vai impulsionar a construção civil, a indústria de máquinas e a indústria química. Vai aumentar a demanda por indústrias que forneçam materiais e equipamentos para essas concessões”, afirma. Segundo ele, a privatização da Cedae é o primeiro passo para ampliar a oferta de saneamento básico para a população brasileira.
“O saneamento é o patinho feio da infraestrutura brasileira. Temos mais de 5.200 municípios atendidos por empresas estatais que não têm recursos e [têm] todos os problemas que conhecemos”, destaca Cardoso. Dados do Painel Saneamento Brasil, iniciativa do Instituto Trata Brasil (ITB), mostram que 33.226 milhões de pessoas não têm acesso à água no país e 93.730 milhões não contam com coleta de esgoto. A privatização do setor é um caminho para resolver esses problemas, diz Cardoso.
Aprovado em 2020, o Novo Marco do Saneamento Básico é visto como uma forma de atrair investimentos privados para levar água e esgoto a toda a população, melhorar a qualidade do serviço e estimular a retomada da economia. “O saneamento tem uma grande capilaridade, com muitas obras no interior. Nós aprovamos uma lei boa que já tem seus benefícios e um leque de privatização, mas ainda não podemos comemorar, porque falta a regulamentação”, pontua o gerente da CNI.
A legislação aprovada no ano passado e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro prevê universalizar o saneamento básico no país até 31 de dezembro de 2033. A meta é atingir cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto, o que exigirá investimentos de até R$ 700 bilhões.
“Estamos em uma pandemia e, mesmo assim, conseguimos avançar com esses projetos e leilões, atraindo players que são muito importantes para o país”, avalia Faria, da KPMG. Ele destaca, ainda, que, no caso da Cedae, muitos participantes do leilão foram investidores internacionais que já têm alguma operação no Brasil. “A necessidade de investimento privado é tão grande que precisamos desse pull de capital de fora do país. Tudo isso é muito positivo para a retomada do crescimento econômico”, afirma.
Na sua avaliação, a agenda de investimentos para a área de infraestrutura é bem ambiciosa. “O grande desafio vai ser implementar a agenda dentro dos prazos, mas temos sempre competição nesses leilões, que são melhores quanto mais competitivos forem, com players de valor”, argumenta Faria. Conseguir isso, principalmente em meio a uma pandemia, é um grande desafio, mas também é fundamental para garantir a competição que gera valor para o governo e para a população brasileira.
Insegurança jurídica
Frischtak, da Inter.B, chama a atenção para outro fator positivo associado ao investimento privado em infraestrutura: melhorar a governança das empresas hoje sob gestão pública. “Não é um problema de ideologia, é um problema pragmático. Temos que assegurar que as empresas funcionem bem, que tenham boa governança e boa gestão”, afirma. Entretanto, para atrair investidores, diz, é preciso reduzir a insegurança jurídica e diminuir a imprevisibilidade regulatória.
Esta última, destaca ele, é algo preocupante. “A Lei das Agências de 2019 foi excelente, mas sofreu alguns vetos que foram deletérios, porque abriu espaço para a politização das agências”, comenta. Isso aumentou a imprevisibilidade e o risco regulatório, segundo Frischtak. “Eu me preocupo com que esses problemas se tornem elementos estruturais que afetem o investimento em infraestrutura”.
- Artigo do presidente: Investimento privado para o bem do Brasil
Os elementos conjunturais, avalia, são a incerteza macroeconômica, pelo fato de o Brasil não ter um programa fiscal que assegure a solvência do país em médio e longo prazos, e a incerteza política. Há ainda, segundo ele, a incerteza relacionada à questão ambiental. “Tivemos, em anos recentes, uma turbulência desnecessária na área ambiental. Nossa reputação deteriorou-se muito nos anos recentes. Os leilões poderiam ter sido mais bem-sucedidos se pudéssemos afastar esses elementos que introduzem riscos e incertezas”, diz Frischtak.
Para ele, também é importante uma modelagem no programa de concessões. “Dou o exemplo da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), um projeto desafiador e sobre o qual existem dúvidas, se vai poder ou não seguir adiante. O grande desafio não é completar a linha férrea, mas construir o porto em Ilhéus (BA)”, devido aos riscos ambientais. A Fiol vai interligar as Regiões Norte (Tocantins), Nordeste (Maranhão) e Centro-Oeste (Goiás) ao Nordeste, no porto de Ilhéus (BA).
Segundo ele, esse é um projeto caro e há dúvida de que, mesmo com o minério de ferro a US$ 200 por tonelada, o porto seja viável. “Nesse aspecto, acho que devemos ter muito cuidado com projetos que não são viáveis, que não ficam em pé do ponto de vista financeiro, mas que o governo tem abraçado para licitar”, alerta. O trecho 1 da Fiol, de 537 quilômetros entre Ilhéus e Caetité, na Bahia, foi leiloado em abril por R$ 32,7 milhões. A concessão vai durar 35 anos, com investimentos de R$ 3,3 bilhões.
Setor ferroviário terá investimentos de R$ 30 bilhões até 2025
A estimativa do Ministério da Infraestrutura é de que esses investimentos vão contribuir para a criação de 55 mil empregos diretos e indiretos e para o aumento de renda da população ao longo da concessão. A expectativa é de que o trecho 1 da Fiol comece a operar em 2025, transportando mais de 18 milhões de toneladas de carga por ano, cujo principal produto deverá ser o minério de ferro produzido na região de Caetité. Em dez anos, prevê o governo, esse volume vai mais do que dobrar, superando 50 milhões de toneladas em 2035.
Além de minério de ferro, a ferrovia será usada para o transporte de alimentos processados, cimento, combustíveis, soja em grão, farelo de soja, manufaturados, petroquímicos e outros minerais. A operação inicial contará com 16 locomotivas e 1.400 vagões, dos quais 1.100 serão destinados apenas para o escoamento de minério de ferro. Com o aumento da demanda, a expectativa é chegar a 34 locomotivas e 2.600 vagões em dez anos.
Até 2025, os investimentos para ampliar a malha ferroviária no país, por meio de concessões públicas, devem ficar em, pelo menos, R$ 30 bilhões, segundo estimativas do Ministério da Infraestrutura. Um estudo de 2018 da Fundação Dom Cabral mostrou que as ferrovias respondem pelo escoamento de 5,4% da produção brasileira. A maior parte desse escoamento, 75%, é feita por meio da malha rodoviária. O objetivo do governo é ampliar a participação da malha ferroviária nos próximos anos.
Entre os projetos listados no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) está a Ferrogrão. O projeto visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A ferrovia conta com uma extensão de 933 km, conectando a região produtora de grãos do Centro-Oeste ao estado do Pará, desembocando no Porto de Miritituba. Estão previstos, também, o ramal de Santarenzinho, com 32 km, e o ramal de Itapacurá, com 11 km. São estimados investimentos de R$ 63,7 bilhões em 69 anos.
Dados do Ministério da Infraestrutura, divulgados pelo jornal O Estado de S.Paulo em abril, mostram que mais de R$ 5,2 bilhões foram injetados em 60 projetos de infraestrutura portuária na região do Arco Norte desde 2014. A cifra é conservadora, porque alguns empreendimentos não detalham seus investimentos. A lista inclui, ainda, 19 terminais públicos que foram concedidos à iniciativa privada desde 2017, somando mais R$ 3,7 bilhões de investimento e totalizando R$ 8,9 bilhões.
Governo quer leiloar 5.348 km de rodovias até 2022
Na área rodoviária, o PPI já selecionou trechos de rodovias federais em 10 estados, que somam 5.348 km, para serem concedidos ao setor privado. Os investimentos iniciais estão estimados em R$ 53,6 bilhões durante o período de concessão. A intenção do Ministério da Infraestrutura é realizar os leilões até o final de 2022 e os estudos estão sendo feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Há trechos de rodovias no Ceará e no Rio Grande do Sul (BR-116) e em Goiás (BR-060).
“Temos um programa de concessões corretamente ambicioso. Particularmente, nós temos um programa de concessões rodoviárias e, quando você soma as rodovias federais e estaduais, é o maior do mundo”, explica Faria, da KPMG. “Existe um risco de não termos um número suficiente de interessados para esse conjunto amplo de ativos, mas não temos alternativa e devemos correr esse risco. Na pior das hipóteses, você pode remodelar, mudar alguns parâmetros e o tamanho da outorga e recolocar em leilão”.
Embora considere o investimento privado importante para a retomada do crescimento econômico, Marcus Quintella, diretor do Centro de Estudos FGV Transportes, afirma que ele precisa atuar de forma complementar. “Não existe nenhum país do mundo onde o investimento privado seja responsável pela construção da infraestrutura do país”, ressalta. Nos últimos 10 anos, diz, o Brasil vem investindo pouco em infraestrutura — em torno de 1% do PIB, sendo de 0,2% na área de transportes.
Atualmente, segundo ele, o governo parece estar montando uma política de Estado, em que a arrecadação via outorga não é o objetivo principal, mas sim a melhoria da infraestrutura brasileira. “Isso é usar a inciativa privada para gerar emprego, preparar a infraestrutura, fazer cruzamentos e investimentos cruzados”, argumenta. Ele acredita que a política é muito boa, embora não vá atender às necessidades do país somente com investimento privado. É preciso também investimento público, defende.
Quintella estima que os custos de logística representem atualmente cerca de 15% do PIB, o que prejudica a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional. O custo é altíssimo, diz ele, porque é impactado pelas condições das rodovias, pelos pedágios e pelo tempo de viagem. “Esse é o grande problema da competitividade do Brasil. Somos altamente competitivos no mundo em termos de agronegócio, da porteira para dentro, mas quando vamos transportar soja ou milho, temos problemas para chegar ao porto”.
Privatização da Eletrobras
Se há oportunidades para o investimento privado, ainda há inúmeros obstáculos a serem superados, diz Frischtak, da Inter.B. Ele cita como exemplo a necessidade de regulamentação da Nova Lei do Gás e do Novo Marco do Saneamento, que dependem de decretos federais para a definição do modelo de exploração desses setores. Ambas as propostas foram aprovadas em 2020 pelo Congresso Nacional, onde a privatização da Eletrobras ainda enfrenta resistências.
Para Frischtak, ela já devia ter acontecido desde os anos 1990. “A Eletrobras precisa ser privatizada. Não sei se é o melhor modelo, mas discutir modelos neste momento vai atrasar a privatização por mais dez anos’, avalia. Se a Eletrobras tivesse sido privatizada nos anos 1990, argumenta, o Brasil teria uma empresa bem distinta. “Não teríamos tido bilhões de reais de prejuízo com as distribuidoras que, graças a Deus, agora já foram privatizadas”.
Faria, da KPMG, destaca que é importante reunir o consenso necessário para avançar com esses projetos, seja a privatização da Eletrobrás, seja o Novo Marco do Gás. “São processos que levam seu tempo, como o Novo Marco do Saneamento — um processo longo, mas que chegou a um bom resultado”, afirma. Ele diz que é muito importante fazer esse trabalho bem, pois o pior que pode acontecer é haver retrocesso. “Na medida em que você quer atrair o setor privado e investidores internacionais, é importante ter um processo que, em termos de calendário, tenha credibilidade”.
Nesse sentido, diz Frischtak, o Legislativo tem um papel importante. “O Congresso Nacional tem mil defeitos, mas a verdade é que, nessas duas legislações, de saneamento básico e do Novo Marco do Gás, teve um papel importante”, diz.
Segundo ele, o Legislativo desempenhou um papel excepcional: foram aprovadas duas legislações de primeira grandeza, que devem estimular novos investimentos privados ao longo dos próximos anos.
Frischtak afirma, ainda, que é importante calcular a taxa social de retorno das concessões públicas ao setor privado, e que é preciso melhorar a governança do investimento público e do investimento financiado pelo setor público. “Parte da governança é planejamento, qualidade de projeto e cálculo da taxa social de retorno. Nós temos uma agenda legislativa que precisamos fazer andar. Então, a relação do Executivo com o Congresso é fundamental”, finaliza.