O Brasil pode melhorar rapidamente a qualidade de sua matriz energética, triplicando, em poucos anos, a utilização do gás natural pela indústria, reduzindo custos, aumentando a competitividade e ainda cortando as emissões poluentes. Tudo isto sem que o governo, em crise fiscal, tenha que investir um único centavo. Este seria um passo extremamente relevante na construção de um parque industrial mais eficiente e com redução de custos de produção.
O aumento da competição no mercado de gás natural, que está associado à revisão do modelo tarifário e à nova regulamentação para o uso compartilhado da infraestrutura logística, poderia reduzir os preços dos atuais 14 dólares por milhão de BTU para algo em torno de nove dólares, segundo Rodrigo Garcia, especialista em energia da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Segundo ele, os primeiros passos para um futuro mais promissor já foram dados, por meio da elaboração de uma série de trabalhos conjuntos entre o setor privado e órgãos estatais como o Ministério de Minas e Energia (MME) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Fátima Giovanna Coviello Ferreira, diretora de economia e estatística da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), concorda que existe espaço para uma forte redução de preços no médio prazo em um novo cenário regulatório, mas manifesta a preocupação da entidade com eventuais efeitos da conjuntura política no encaminhamento do tema. Para a diretora, “é imprescindível que os consensos obtidos em oito documentos reunidos no projeto Gás para Crescer prossigam e que sejam implementadas as várias ações que independem de alterações legislativas, de tramitação mais difícil na atual conjuntura”.
Os documentos mencionados, que representam pontos de consenso para o novo marco regulatório necessário ao desenvolvimento do mercado de gás, foram reunidos pelo Ministério de Minas e Energia e apresentados para consulta pública. Agora, as contribuições recebidas estão sendo analisadas pelo MME para possível incorporação ao documento Diretrizes Estratégicas para o desenho de novo mercado de gás natural no Brasil.
Para a diretora da Abiquim, as propostas em análise representam uma ponte entre o modelo ainda vigente e certamente esgotado, como fica evidente nas atuais limitações de investimento da Petrobras, e o futuro de um mercado mais aberto, competitivo e bem regulamentado, onde o custo da matéria-prima poderia ser inferior em mais de 30% em relação às cotações atuais. Diversas medidas independem de alterações legislativas, lembra Fátima Coviello Ferreira, podendo ser adotadas pela ANP e pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), como a regulamentação do gás natural como matéria-prima, uso já previsto na Lei do Gás em vigor.
Preço é a soma simples de custo da molécula, do transporte e da distribuição. No Brasil, esta equação é composta por um único vendedor da matéria-prima, mais um monopólio natural sem regulamentação no transporte e mais um sistema ineficiente e nada transparente na distribuição, explica Camila Schoti, diretora de energia da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace). É esta equação que o programa Gás para Crescer pretende resolver.
O superintendente da Associação Técnica Brasileira das Indústrias Automáticas de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, é irônico ao comentar o modelo de regulação estadual da distribuição: “foi inspirado nas capitanias hereditárias”. Para ele, a legislação estadual contém normas que inflacionam os custos do gás, tornando muitas operações ineficientes. Ainda que a revisão da regulamentação estadual seja imprescindível, Belmonte considera que esse é um dos nós regulatórios mais difíceis de desatar atualmente, dada a falta de consenso.
Atualmente, a indústria brasileira é o maior consumidor do gás natural do país, tendo utilizado, em 2016, cerca de 41 milhões de m3/dia, mais da metade do consumo nacional. Mas, conforme ressalta a CNI, a formação do preço do gás no Brasil está fortemente vinculada ao atual modelo regulatório, que funciona em regime de virtual monopólio na produção, comercialização e importação e com um agente econômico dominante nas demais atividades. No atual modelo, as cotações não sofreram quedas significativas, nem mesmo com a redução da atividade industrial nos últimos anos de recessão.
Lucien Belmonte, da Abividro, comenta que o custo do transporte de gás no Brasil é duas ou três vezes superior ao gasto em outros países. Esta estatística foi complementada por Camila Schoti, da Abrace, que lembra que “nossa tarifa de escoamento é de US$ 1,75 por milhão de BTU, contra US$ 0,50 na Argentina, com malha semelhante”. Camila lembra, ainda, que parte significativa da produção nacional é de gás associado ao petróleo, utilizada na exploração dos campos marítimos e não contribui para o atendimento do mercado. Importações de gás natural liquefeito (GNL) esbarram nas limitações da infraestrutura, embora sejam feitas em escala reduzida. O quadro geral de produção é um limitante ao aumento do consumo.
“O primeiro passo não está na adoção de um novo marco regulatório, mas sim em uma política mais clara e transparente da ação futura do gigante do setor.”Lucien Belmonte, superintendente da Abividro |
A produção nacional é francamente insuficiente para o atendimento do mercado, dependendo o país, essencialmente, das importações da Bolívia, cerca de 28 milhões de m3/ dia em 2016, realizadas exclusivamente pela Petrobras. Esta é uma operação inviável na opinião dos consumidores brasileiros. Com a localização dos campos mais promissores na plataforma continental e distante dos centros de consumo, será necessário expandir a produção em campos de terra, permitindo a entrada de empresas de menor porte do que as petroleiras tradicionais, estimulando a competição e induzindo a redução de custos. O Ministério de Minas e Energia avalia que a continuidade do Programa de Revitalização das Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural em Áreas Terrestres (REATE), lançado em janeiro deste ano, irá contribuir para o aumento das atividades de exploração e produção em áreas terrestres, fortalecendo a competitividade da indústria petrolífera onshore nacional. Mas não há previsões a respeito da velocidade e extensão desse impacto sobre o mercado consumidor, embora o MME manifeste esperança de que a 14ª rodada de leilões da ANP, prevista para o segundo semestre deste ano, inicie esse processo. Com as mudanças no modelo de gestão, nos objetivos estratégicos e, principalmente, na visão ideológica de competição e mercado, a Petrobras está implantando mudanças em seu papel, reduzindo novos investimentos e alienando ativos em diversos setores de atuação, incluindo ativos importantes na área de gás natural. O Superintendente da Abividro, contudo, não está otimista com a nova gestão da Petrobras, preferindo esperar que a empresa se posicione mais explicitamente em relação à sua visão de um novo mercado de gás. Lucien Belmonte considera que “o primeiro passo não está na adoção de novo marco regulatório, mas sim em uma política mais clara e transparente da ação futura do gigante do setor”.
A Petrobrás, dominante no setor de gás natural, com 86% da produção total, 100% da comercialização e o controle de praticamente toda a infraestrutura, anunciou que reduzirá seu papel neste segmento, já tendo vendido alguns ativos no setor de transporte. Atualmente, é acionista em 18 e controladora em duas das 27 distribuidoras de gás natural que atuam no Brasil, com poder de mercado assimétrico sobre os competidores, o que mantém o mercado brasileiro fechado e essencialmente monopolista. Porém, ao liderar a estruturação e o desenvolvimento da indústria de gás, a Petrobrás levou a participação do gás natural na matriz energética brasileira de 4% em 1999 para 13,7% em 2015.
O gás pode ter um papel muito importante na retomada do crescimento nacional. Nos Estados Unidos, por exemplo, a recuperação da economia nos últimos anos deve muito à redução dos custos de energia para uso no aquecimento e na indústria, derrubando as cotações e as importações de petróleo. Na avaliação de Rodrigo Garcia, da CNI, boa parte do êxito do shale gas se deve não apenas aos baixos custos de produção, mas também à excelente e bem regulamentada rede logística e ao competitivo modelo de negócios. Atualmente, o Brasil não pode pensar em preços equivalentes no curto prazo, pela baixa produção de gás natural em terra, pela dependência de importações e falta de infraestrutura e, também, pelo papel dominante e virtualmente monopolista da Petrobras no mercado de gás.