Diante da necessidade de transição para uma economia de baixo carbono, em resposta às mudanças climáticas, o setor automotivo convive com o desafio da descarbonização. Ela pode vir por meio da transição para carros elétricos, híbridos (que têm tanto o motor elétrico quanto o motor de combustão interna), ou pelo uso de biocombustíveis em vez de combustíveis fósseis.
Um dos caminhos para eliminar ou reduzir significativamente a emissão do dióxido de carbono (CO2) e de outros gases que causam o efeito estufa está em na pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) promovidos a partir da união entre o setor privado e instituições de pesquisa aplicada, como os Institutos SENAI de Inovação, especializados em criar produtos, processos e soluções que tenham impacto social e impulsionem a competitividade da indústria brasileira.
Criado em 2018 pelo governo federal, o programa Rota 2030, agora Mover, inclui o Alavancagem de alianças para o setor automotivo, programa prioritário coordenado pelo SENAI que já captou cerca de R$ 506 milhões. Esse recurso é destinado a três frentes: projetos de PD&I, consultorias em produtividade e digitalização e MBIs.
Na frente de PD&I, que acelera a inovação em toda a cadeia automotiva, até agora, mais de R$ 201 milhões foram investidos em 91 projetos para a cadeia automotiva, executados por Institutos SENAI de Inovação em parceria com 194 empresas do setor.
O diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Gustavo Leal, destaca que é por meio da inovação que a indústria automotiva pode ser mais sustentável e se tornar mais competitiva no mercado global.
“A inovação tem um papel central no enfrentamento às mudanças climáticas e a transformação da indústria automotiva depende de iniciativas que promovam a descarbonização. Os Institutos SENAI de Inovação têm um papel fundamental nesse processo e no fortalecimento do ecossistema de inovação brasileiro”.
Além de conectar pesquisadores e empresas, a iniciativa também abre um caminho para soluções que beneficiem a sociedade como um todo. Além disso, a produção de veículos elétricos e híbridos no Brasil e a nacionalização de componentes para a cadeia de mobilidade são alguns dos objetivos da nova política industrial do governo federal.
Conheça alguns projetos do Rota 2030:
1. Sistema regenerativo elétrico para caminhões de carga emitirem menos CO2
Feito por quem?
Randoncorp, Gerdau, Companhia Industrial de Peças (CIP), Fundação Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Instituto SENAI de Inovação em Sistemas de Manufatura e Processamento a Laser, de Santa Catarina.
Como funciona?
Voltado para o transporte rodoviário de cargas, o principal objetivo do projeto é minimizar as emissões de CO2. Desenvolveu-se um sistema regenerativo elétrico e de tração auxiliar para veículos semirreboques de carga pesada, também chamado de sistema e-Sys, que é comercializado desde 2022.
O sistema desenvolvido recupera a energia cinética (gerada pelo movimento) que normalmente seria perdida na forma de calor durante a desaceleração de um caminhão e a armazena em baterias. Essa energia pode, então, ser usada para reforçar a tração do veículo, especialmente em situações como subidas e ultrapassagens, através de motores elétricos integrados.
De acordo com o pesquisador e responsável técnico pelo projeto, Bruno Magalhães, do Instituto SENAI de Inovação em Sistemas de Manufatura e Processamento a Laser, de Santa Catarina, a abordagem se compara ao conceito de Sistema de Recuperação de Energia Cinética (KERS) empregado em carros de Fórmula 1.
“Além de uma economia de combustível de até 25%, também observamos uma redução no desgaste de componentes, na geração de resíduos e nas emissões de gases de efeito estufa. Estimamos que essa solução possa reduzir os custos de frete em até 10%, o que impacta positivamente na eficiência operacional e na sustentabilidade ambiental”, explica Magalhães.
Segundo ele, para desenvolver o projeto, o Instituto SENAI reuniu, além de profissionais, tecnologias e equipamentos de ponta para criar ligas de aço específicas para uma aplicação inovadora.
“Esse produto representa um marco significativo no segmento comercial do setor automotivo, uma vez que oferece novas alternativas de propulsão. Isso não apenas contribuirá para a redução das emissões de poluentes, mas também para um melhor desempenho geral de veículos e componentes. Assim, o projeto não só impulsiona a inovação tecnológica, mas também abre portas para uma abordagem mais sustentável e eficiente dentro da indústria automobilística”, diz.
Para César Augusto Ferreira, diretor de tecnologia e inovação da Randoncorp, o e-Sys representa um passo importante para a mobilidade elétrica no Brasil. “A indústria da mobilidade está se reinventando e a eletrificação torna-se, a cada dia, uma alternativa atraente, dado o constante aprimoramento tecnológico dos sistemas de armazenamento de energia e da conexão destes com as infraestruturas. É um projeto com potencial de transformação global, por envolver uma aplicação inédita para veículos pesados e ser uma experiência pioneira e disruptiva”, considera.
2. Projeto que otimiza o consumo de combustível por meio de simulação
Feito por quem?
Stellantis, AVL, Marelli e Centro de Inovação e Tecnologia do SENAI de Belo Horizonte, em Minas Gerais.
Como funciona?
Para ajustar a programação de sensores que compõem a central eletrônica que controla o motor de um carro, normalmente é usado um dinamômetro de chassis. O projeto desenvolveu uma estratégia para calibrar esse sistema sem precisar de um carro inteiro, por meio de uma simulação feita em um banco de provas de motores.
Com a simulação, esse motor pode ser ajustado em qualquer tipo de carro, a depender de suas características. Isso resulta em economia de tempo no desenvolvimento do motor, redução de custos e de energia (já que se evita a produção de um carro que será descartado, o que diminui a pegada de carbono).
Essa inovação também pode impulsionar o desenvolvimento de veículos híbridos, aponta Júlio Cézar Pires, coordenador de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação do Centro de Inovação e Tecnologia do SENAI, composto por Institutos SENAI de Inovação e por Institutos SENAI de Tecnologia de Belo Horizonte.
“A urgência em reduzir as emissões de CO2 tem desafiado a indústria a buscar a otimização máxima dos sistemas. Calibração e estratégia de controle são fundamentais para alcançar o melhor resultado possível. Isso vai permitir o avanço e a redução do prazo na calibração e desenvolvimento de novas estratégias de veículos híbridos.”
No projeto, que ainda está em fase de testes, o SENAI atuou na definição das condições para a realização do modelo para simulação, especificação das principais características dos equipamentos para testes, coleta, processamento de dados e realização de testes de validação. Já as empresas da aliança contribuíram com a expertise em motores a combustão interna e testes de motores.
“A inovação é o sentido da nossa existência. Trabalhamos com ciência e tecnologia para o avanço da indústria brasileira. Com pesquisa e inovação apoiamos a indústria nacional a se tornar mais competitiva e a oferecer produtos mais adaptados à realidade brasileira e à necessidade de adequação às condicionantes ambientais e legislações que regulam os diversos setores da cadeia industrial”, diz Pires.
Segundo Saulo Soares, pesquisador da Stellantis, empresa proponente da aliança, esse projeto beneficia o setor automotivo em vários sentidos:
Atendimento aos padrões ambientais: Soares explica que a preocupação global com as emissões de gases de efeito estufa cresce a cada dia e inclui o impacto ambiental causado pelos veículos automotivos. “É fundamental desenvolver tecnologias que permitam aos fabricantes atender aos padrões regulatórios cada vez mais rigorosos”, diz.
Eficiência energética: o projeto visa melhorar a eficiência energética dos veículos híbridos, ou seja, ajuda a reduzir o consumo de combustível e, consequentemente, as emissões de CO2, de acordo com o pesquisador. “Isso é essencial para alcançar as metas de redução de emissões estabelecidas pelos governos e pelas regulamentações ambientais”.
Inovação tecnológica: “Ao desenvolver uma tecnologia inovadora para simular ciclos de condução veicular e testar sistemas híbridos, o projeto contribui para o avanço tecnológico no setor automotivo. Isso pode levar ao desenvolvimento de novas soluções e tecnologias que melhoram a eficiência e a sustentabilidade dos veículos”, explica.
Competitividade da indústria: “As empresas automotivas que conseguem desenvolver tecnologias mais eficientes e sustentáveis têm uma vantagem competitiva no mercado”. Para Soares, investir em projetos como esse pode ajudar as empresas, além de atenderem às demandas dos consumidores por veículos mais limpos e eficientes.
3. Bateria de chumbo-carbono avançada para veículos elétricos de baixa velocidade
Feito por quem?
ELO Componentes Eletroquímicos, eiON, Bianchini e Instituto SENAI de Inovação em Eletroquímica, do Paraná.
Como funciona?
As empresas e o SENAI desenvolveram uma bateria de chumbo-carbono avançada para veículos elétricos de baixa velocidade. As baterias à base de chumbo têm adição de carbono nanoestruturado para melhorar a durabilidade e os processos de recarga.
Um veículo elétrico de baixa velocidade consegue percorrer até 100km com uma velocidade máxima de 60 km/h. O diretor de tecnologia da ELO, Sérgio Stumpf, explica que, como o deslocamento médio de usuários de veículos elétricos nos centros urbanos é de 30 km e a velocidade média desses automóveis é de 25 km/h, a bateria chumbo-carbono avançada desenvolvida permite que esses veículos sejam usados como alternativa aos veículos elétricos com autonomia elevada (que geralmente é de 300 km).
Segundo ele, os veículos elétricos com autonomia elevada são usados, na maior parte do tempo, em ciclos urbanos, e consomem apenas 10% da bateria que poderiam usar em um dia. Essa bateria é feita de lítio, material que encontra desafios ambientais para descarte. Por outro lado, a bateria de chumbo-carbono é mais sustentável, já que, depois de utilizadas, podem ser enviadas a plantas de reciclagem para a produção de novas baterias, o que minimiza os efeitos sobre o meio ambiente. “O projeto provou que a tecnologia de baterias chumbo-carbono é aplicável nesse tipo de veículo elétrico para uso urbano e, assim, mostrou ter capacidade de popularizar a eletrificação em centros urbanos a um custo baixo”, diz Stumpf.
O projeto ainda é um protótipo, mas as baterias serão comercializadas a partir do mês de agosto, aplicadas em carros de golf, em máquinas de lavar piso e em plataformas elevatórias, por exemplo. O protótipo é feito com tecnologia 100% brasileira.
A ELO Componentes Eletroquímicos, empresa de médio porte que propôs a aliança, forneceu a tecnologia inicial de baterias chumbo-carbono para veículos. A Bianchini, empresa de pequeno porte, por sua vez, operacionalizou a montagem dos protótipos de baterias desenvolvidos utilizando os eletrodos fornecidos pela ELO. Por fim, o Instituto SENAI participou do desenvolvimento da bateria e as integrou ao veículo da eiON, startup de mobilidade. Segundo o pesquisador Heverson de Freitas, do Instituto SENAI de Inovação em Eletroquímica, o projeto tem tudo a ver com as mudanças no setor automotivo e o modo como as pessoas se deslocam.
“Pensando em mobilidade urbana, existe uma tendência mundial de eletrificação da frota e que o deslocamento seja feito por transporte coletivo ou veículos menores que os carros a que estamos acostumados. Ou seja, de maneira mais sustentável, com menos emissões”.
A aliança com o ISI Eletroquímica, segundo Heverson, ajudou a empresa no fornecimento de equipamentos de última geração e técnicos capacitados, além de uma rede de profissionais que fornecem suporte para resolver possíveis entraves tecnológicos.
“Esse projeto foi contemplado com recursos do Rota 2030 para uma segunda fase, em que técnicos especializados em automação estão estudando e otimizando o inversor responsável pela aceleração do motor, além do desenvolvimento de um sistema de gerenciamento do conjunto de baterias, o que vai ajudar sensivelmente na otimização da performance e durabilidade das baterias. Esse tipo de apoio é quase impossível em empresas de pequeno e médio porte, pois elas não dispõem dos equipamentos e de pessoal especializado para esse tipo de desenvolvimento”, considera.
O conjunto de baterias, segundo Stumpf, da ELO, continua em testes em busca de aumentar a autonomia do veículo e a melhoria de durabilidade. “Os resultados em andamento dão convicção de que o protótipo tem muito potencial de se tornar um produto, devido ao baixo custo e atendimento da autonomia demandada em ambientes urbanos”, explica.
4. Folha de alumínio para aplicação em baterias de íons-lítio
Feito por quem?
Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), WEG e Instituto SENAI de Inovação em Eletroquímica, do Paraná.
Como funciona?
A CBA, a WEG e o Instituto SENAI de Inovação em Eletroquímica desenvolveram uma folha de alumínio para aplicação em baterias de íons-lítio, uma tecnologia de armazenamento de energia em ascensão, de acordo com Fernando Wongtschowski, gerente-geral de marketing, estratégia e inovação da CBA, proponente da aliança. Essa tecnologia tem aplicação, por exemplo, em veículos elétricos, aparelhos celulares, notebooks, nobreaks, tablets, entre outros.
“Atualmente, as células dessas baterias são todas importadas. A parceria com o SENAI possibilitou que a CBA se tornasse a pioneira no desenvolvimento dessa folha no país, o que, futuramente, pode mudar o atual cenário nacional automotivo”, explica Wongtschowski.
No caso dos veículos elétricos, o especialista lembra que o uso dessa tecnologia reduz a emissão de poluentes e, consequentemente, o impacto ambiental associado ao transporte. O projeto, segundo ele, foi idealizado devido ao aumento da demanda por baterias íons-lítio, que são recarregáveis e usam compostos de lítio como um dos eletrodos.
No projeto, que está em fase final de desenvolvimento, o Instituto SENAI de Inovação em Eletroquímica foi responsável por fazer as caracterizações e testes para confirmar a compatibilidade com a tecnologia de baterias de íons-lítio. “Os resultados da primeira fase do projeto foram muito promissores e agora estão sendo feitos os testes de validação em escalas maiores, buscando aumentar a maturidade do produto”, conta o pesquisador Heverson de Freitas.
O Instituto, segundo Freitas, desenvolve uma série de projetos relacionados a baterias de íons-lítio e a veículos elétricos, e conta com pesquisadores e infraestrutura para isso. “Boa parte dos nossos projetos estão relacionados ao Rota 2030. Passamos por um momento de transformação acelerada e desafiadora, em especial no setor automotivo. E inovar é fundamental para o desenvolvimento da sociedade como um todo, seja do ponto de vista ambiental, econômico ou social”.
Mobilidade Verde e Inovação
Em dezembro de 2023, o governo federal anunciou a medida provisória que cria o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que substitui o Rota 2030. No Mover, o SENAI seguirá com o fortalecimento do setor automotivo brasileiro por meio de projetos de PD&I desenvolvidos em parceria com os Institutos SENAI de Inovação .
O Mover prevê a redução de R$ 3 bilhões de impostos por ano para o setor de mobilidade, para empresas que se comprometam a investir em pesquisa e desenvolvimento. O objetivo é que até 2030, o Brasil avance como hub global de desenvolvimento e produção de veículos elétricos e híbridos, com ênfase nos combustíveis alternativos. O programa faz parte da “Missão 3: Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades”, da Nova Indústria Brasil.