Por que aprovar já a reforma tributária

Apesar da pandemia e seus efeitos, existe consenso entre lideranças políticas, setor produtivo e especialistas sobre a direção da mudança nos impostos

Ponto de partida para as discussões são as duas Propostas de Emenda Constitucional, que já tramitam no Congresso: a PEC 45/2019 e a PEC 110/2019

Ainda que a agenda do Congresso Nacional mude radicalmente por causa da pandemia, é ainda mais urgente a aprovação de mudanças no nosso sistema de impostos, para estimular a confiança de empresários e investidores e reduzir nossa vulnerabilidade no futuro.

“É uma reforma aguardada há décadas pelos brasileiros, com desburocratização e simplificação. É a possibilidade, de fato, de dar segurança jurídica e tranquilidade para os empreendedores confiarem no Brasil”, registrou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), durante a instalação da comissão mista criada para elaborar uma proposta de reforma tributária, em 19 de fevereiro. Agora, o que era uma previsão com grande dose de certeza tornou-se apenas um cenário desejado, diante das dúvidas sobre a extensão da pandemia.

Composta por 25 senadores e 25 deputados federais, a comissão é responsável por elaborar uma proposta de consenso para atualizar o sistema tributário brasileiro. O ponto de partida para as discussões são as duas Propostas de Emenda Constitucional já em discussão no Congresso Nacional: a PEC 45/2019, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), e a PEC 110/2019, apresentada por Alcolumbre e outros senadores. A expectativa otimista de quem apoia a reforma é que a proposta, cujo texto ainda será negociado, pudesse ser votada em dois turnos na Câmara e no Senado antes do recesso de julho. No momento atual, já não é possível fazer essa previsão. 

"Não conheço um único setor contrário à reforma. O Brasil tem pressa em superar o manicômio tributário em que vivemos”, afirma o senador Roberto Rocha (PSDBMA) presidente da comissão mista da reforma tributária. 

Presidente da comissão mista, o senador Roberto Rocha (PSDB-MA) destacava, antes da crise, que nunca um assunto tão árido e tão complexo teve tanto interesse de deputados e senadores. “O Congresso Nacional tem um papel muito importante neste momento. Temos a função de conciliar o texto que está na Câmara, que é muito bom, com o texto que está no Senado, também muito bom, e com os assuntos de interesse do Executivo, pois não se faz uma proposta dessas sem o governo federal”, afirma o tucano.

Para buscar um consenso ainda melhor, diz o senador, é preciso considerar os interesses dos governos estaduais e do setor privado. Na avaliação de Rocha, “as perspectivas de aprovação da reforma tributária são amplas, considerando as convergências de interesses de todos os setores econômicos e de todos os entes federativos”. Além disso, as propostas em discussão já guardam uma base comum considerável e permitem que se faça um mapa do que já é consenso. “Não conheço um único setor que se coloque contrário à necessidade da reforma. O Brasil tem pressa de superar o manicômio tributário em que vivemos”, diz o senador maranhense.

Ator importante nas negociações, o governo federal ainda não enviou ao Legislativo sua proposta de reforma tributária, mas o Ministério da Economia estuda propor três mudanças na tributação: a criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal em substituição à Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); a criação de um imposto seletivo sobre bens e serviços específicos, como cigarros e bebidas, no lugar do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); e a introdução de mudanças no Imposto de Renda (IR), com a retomada da tributação sobre lucros e dividendos e a desoneração da folha de pessoal. A criação de um imposto sobre valor agregado também está prevista nas propostas em discussão no Congresso Nacional. 

Substituição

De maneira resumida, a proposta da Câmara prevê a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em substituição a três tributos federais - IPI, Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) -, um tributo estadual - Imposto sobre Circulação de Mercadorias Serviços (ICMS) - e outro municipal - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

A base de cálculo será uniforme em todo o país, mas os estados terão autonomia para fixar as alíquotas, aplicadas a todas as operações. A alíquota final do IBS em cada local seria a soma das alíquotas federal, estadual e municipal. A proposta da Câmara prevê, ainda, a criação de um imposto seletivo federal, para incidir sobre bens e serviços específicos cujo consumo se deseja desestimular, como cigarros e bebidas alcoólicas.

Já a proposta do Senado propõe a extinção de sete tributos federais: IPI, PIS, Cofins, Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Contribuição de Formação do Patrimônio do Servidor (Pasep), Salário-educação, Cide-Combustíveis; ICMS; e ISS. Em substituição seriam criados o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) e um tributo seletivo específico sobre bens e serviços (imposto seletivo), de competência federal e que incidiria sobre itens como petróleo e derivados, combustíveis e lubrificantes, cigarros, energia elétrica e serviços de telecomunicações.

Além disso, o texto em discussão no Senado prevê que a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) seja extinta e, de acordo com a proposta, incorporada ao Imposto de Renda, que passaria a ter alíquotas ampliadas. Por fim, o imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) seria cobrado também sobre aeronaves e embarcações, mas excluiria veículos comerciais destinados à pesca e ao transporte público de passageiros e cargas com maior capacidade contributiva.

Burocracia onera setor automotivo e afeta a competitividade, diz Moraes (Anfavea)

Ganho potencial 

Como a discussão do texto ainda está na fase inicial na comissão mista, não há estimativas de impacto econômico, mas um estudo elaborado em 2019 pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) concluiu que os dois textos que já estão no Congresso promovem uma simplificação na cobrança de impostos, sem aumentos na carga tributária. Considerando que não haverá alterações no volume da carga tributária, o estudo estima que, quando comparadas as duas propostas em termos de aumento de renda disponível para o consumo, os resultados seriam muito próximos. O ganho potencial de consumo no país seria de R$ 122,7 bilhões na PEC 45/2019 e de R$ 122,1 bilhões na PEC 110/2019.

Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), diz que “o momento é de se buscar um consenso sobre a melhor alternativa. A reforma tributária é urgentíssima, assim como a administrativa”.

“É um nó difícil de desatar, mas esse desafio precisa sair do papel. O setor automotivo consome, por ano, cerca de R$ 2,3 bilhões para fazer cálculos e acompanhamentos de tributos. Nas exportações, a burocracia nos onera em 12% só em resíduos tributários. Isso afeta a competitividade do país e vale para todos os setores da nossa economia. É preciso simplificar para facilitar a vida de todos os agentes econômicos e melhorar o nosso ambiente de negócios”, diz o presidente da Anfavea.

O economista José Roberto Afonso, professor do Instituto de Direito Público (IDP), lembra que as regras atuais já completaram mais de meio século. Segundo ele, o sistema “está obsoleto, pesado e ultrapassado”. O contexto para uma atualização é dos melhores. “Hoje, há um Congresso Nacional muito mais ativo e interessado na matéria”, diz Afonso, que considera que a mera simplificação da cobrança e do pagamento de tributos, mesmo sem redução de carga tributária, já seja um avanço. 

Complexidade

Empresa de origem britânica da área farmacêutica, a GlaxoSmithKline (GSK) emprega diretamente 60 pessoas na área tributária apenas para que cuidem do pagamento de tributos, informa Vitor Oliveira, regional CFO Consumer Health Care da empresa para a América Latina. Segundo ele, a complexidade do sistema tributário brasileiro, que inclui regras diferentes no recolhimento dos tributos estaduais, faz com que até mesmo os profissionais da área comercial precisem conhecer as regras para saberem qual o impacto dos impostos no preço dos produtos para os clientes.

“A complexidade tributária para conseguir pagar todos os impostos da maneira correta, no dia certo, na quantidade e no valor certos dá muito trabalho e atrasa todo o processo produtivo e de desenvolvimento das empresas”, diz Oliveira. “Todas as empresas no Brasil precisam ter uma área tributária forte para seguir a lei. Além de ser complexa por si só, a legislação prevê muitos impostos diretos e indiretos diferentes para cada produto e há mudanças constantes nas regras. Isso coloca o país totalmente fora de competição com os países mais desenvolvidos”, reclama o executivo da GSK.

Com a experiência de quem já trabalha há quase 15 anos na área tributária, Vitor Oliveira diz que o Brasil está em um momento em que  precisa de uma reforma tributária para que possa se tornar mais competitivo internacionalmente. “Se não fizermos alguma coisa para mudar isso, nós nunca conseguiremos ser competitivos”, argumenta ele, que já atuou na área tributária de grandes empresas na Alemanha, na Argentina, na Inglaterra, nos Estados Unidos e em países da África, com passagens pela Ford, Unilever, Novartis, Johnson & Johnson e Sanofi.

Um dos membros da comissão mista que vai discutir as novas regras que podem simplificar a vida de empresas como a GSK, o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) acredita que a aprovação da reforma vai melhorar o ambiente de negócios no Brasil, mas também terá repercussão direta sobre os empregos. “Hoje temos uma política fiscal muito boa, que busca diminuir o déficit fiscal, mas só isso não resolve o problema da economia. É necessário um novo sistema tributário, principalmente no que diz respeito ao consumo, para que haja uma maior segurança jurídica”. Com maior segurança jurídica, avalia, aumentarão os investimentos no setor produtivo e, consequentemente, a oferta de emprego.

Tema urgente 

A deputada Clarissa Garotinho (PROS-RJ), também da comissão mista, classifica a reforma tributária como “a reforma das reformas”. Para ela, esse é um tema urgente e que unifica o país. “A aprovação de uma reforma é fundamental para a retomada do desenvolvimento do Brasil”, avalia a deputada.

“É muito difícil empreender no Brasil e parte dessa dificuldade é causada pela burocracia dos impostos”, diz Clarissa Garotinho. Ela cita estudo do Banco Mundial que revela que uma empresa gasta aqui, em média, 1.958 horas por ano apenas para pagar tributos. “Além de ser muito tempo, pagar imposto no Brasil é custoso”, afirma a deputada.

Em média, a cada 200 funcionários contratados, um se dedica exclusivamente à tarefa de cuidar do pagamento de impostos, segundo o estudo mencionado pela parlamentar do PROS. Nos EUA, essa proporção é de um para 1.000 empregados. “Estima-se que, no Brasil, gaste-se R$ 60 bilhões por ano apenas para calcular e pagar impostos”, afirma a deputada fluminense.

Na avaliação do deputado Eduardo Cury (PSDB-SP), que integrou a comissão especial da Câmara que analisou a PEC 45/2019,até o início da pandemia eram boas as perspectivas, apesar da ausência do governo federal nas negociações. “Não se faz grandes reformas sem a participação do governo central. Uma reforma tributária pede, ainda, a participação efetiva do governo, pois há a necessidade de várias adequações pertinentes a ele, como compensações de estados que estão pendurados em benefícios fiscais”, diz Cury.
Especialista na área tributária, Jacques Veloso, sócio do escritório Veloso de Melo Advogados, considera que a votação da reforma não será um processo rápido porque há muitos interesses antagônicos a serem compatibilizados. “Apesar disso, temos hoje uma maior maturidade política sobre a necessidade da reforma”, diz ele. Segundo o advogado, a complexidade das normas atuais gera um enorme contencioso e um custo de administração tributária perniciosos para o país. “A insegurança jurídica decorrente da complexidade do sistema é um grande inibidor dos investimentos”, lembra Veloso.

Vinícius Bentolila, gerente tributário para a América Latina na alemã Thyssenkrupp, também destaca a complexa tributação ao longo da cadeia produtiva como um problema a ser resolvido pela reforma. “Há casos em que, somadas todas as alíquotas dos tributos incidentes para a produção de um bem, a carga tributária total pode chegar a 60% do preço final, ou seja, por vezes, mais da metade do preço do bem é tributo. Um remédio que, em muitos países, serve para mitigar esse problema não é utilizado da melhor maneira por aqui. Trata-se da não-cumulatividade, que consiste num sistema em que somente o que se agrega de valor em cada etapa da produção deva ser tributado”, explica Bentolila.

Assim, diz ele, quando uma empresa adquire insumos, os tributos embutidos no preço dessas aquisições deveriam ser transformados em créditos a serem descontados ou compensados na hora da tributação sobre suas vendas. “No Brasil, tal sistema não foi implantado da melhor maneira, pois há uma série de restrições à plena utilização desses créditos. Com isso, o imposto pago na cadeia anterior vira base de uma nova incidência, dando vez à chamada “tributação em cascata”, o que incrementa ainda mais a carga tributária”, destaca o executivo. 

 

Burocracia

Segundo Vinícius Bentolila, o trabalho envolvido na apuração, no controle e no pagamento dos tributos não é pouco. “São dezenas de formulários a serem preenchidos e enviados à administração pública, distintas datas de vencimento para cada tipo de imposto e específicos índices de atualização a serem aplicados em caso de pagamentos fora do prazo ou registro e créditos fiscais, para citarmos apenas alguns exemplos. Além disso, há uma estrutura legislativa específica para cada tributo. Há leis, decretos, instruções normativas e portarias que regulam cada um. Quando estamos falando de um tributo estadual, como o ICMS, por exemplo, esse mesmo fluxo legislativo deve ser multiplicado por 27”, lamenta o gerente da Thyssenkrupp.

Ele destaca, ainda, que toda essa estrutura legal é constantemente alvo de alterações, emendas e revogações. “Diante desse cenário, as empresas têm de investir significativamente no desenvolvimento de sistemas operacionais específicos para atender a tais demandas e contar com diversos profissionais exclusivamente dedicados a essas tarefas”, aponta. Segundo ele, “muito colaboradores, que poderiam estar envolvidos em atividades estratégicas para os negócios e a inovação, devem se ater a processar e controlar as chamadas obrigações acessórias, como tarefas administrativas vinculadas à apuração, ao envio de informações à fiscalização e ao pagamento dos tributos”.

Estudo sobre o Custo Brasil elaborado pelo Ministério da Economia, em parceira com o Movimento Brasil Competitivo (MBC), estima que as despesas das empresas para honrar tributos têm um custo adicional de até R$ 280 milhões na comparação com os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse custo decorre da alta complexidade tributária, da carga impositiva para as empresas, da cumulatividade, da cobrança de tributos na exportação, da informalidade e da sonegação.

 

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