O mate suave da sombra da mata

Unindo o útil ao sustentável, produtores de São Mateus do Sul são os primeiros do Brasil a ter uma indicação geográfica para a erva-mate

A Casa da Memória Padre Bauer é guardiã da história de São Mateus do Sul, no Paraná. Para chegar aos 46 mil habitantes de hoje, as terras férteis, pontilhadas de araucárias centenárias, contaram com a força da imigração. A linha do tempo da cidade é retinta de sobrenomes poloneses, ucranianos e italianos.  

No entanto, a razão pela qual a cidade ganhou fama corre mais antiga. Já estava ali antes da chegada dos europeus, era algo que os povos indígenas, principalmente guaranis e kaingangs, já conheciam e apreciavam havia séculos. De tão importante, respaldou até a independência do Paraná. 

A erva-mate é a razão de ser de São Mateus do Sul. 

A terra do mate

O título de Terra da Erva-Mate não é vão: o município, distante 150 quilômetros de Curitiba, é o maior produtor do Brasil. A urbanização surgiu praticamente para servir de suporte à produção intensa de mate, que ganhou força e escoamento com o início da navegação do Rio Iguaçú. Sozinha, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Mateus do Sul colheu 70 mil toneladas em 2018, mais do que a soma do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. 

Quantidade é sempre importante. Mas o movimento recente, capitaneado por novas gerações, está mais interessado em qualidade. Para brotar folhas suaves e homogêneas, os pés de erva-mate precisam de sombra, de luz filtrada. No seio da Mata Atlântica, protegida por companheiras altíssimas, do mesmo jeito que surgiu na natureza, a erva-mate dá o seu melhor. 

De volta às origens 

O cultivo do mate em escala geralmente é feito em terreno aberto, descampado. Sujeita a todo clima, sobretudo ao sol forte dos verões inclementes do Sul do país, a erva se torna mais amarga. O que os produtores de São Mateus se deram conta é que voltar às origens, preservando a vegetação natural, tem vantagens sensoriais, econômicas e ambientais. 

“A gente descobriu que, além de mais rentável – o valor chega a ser 30% maior – tínhamos um produto com muito mais qualidade. Sem falar que isso pode fazer a diferença na preservação do que resta de Mata Atlântica”, explica Helinton Lugarini, produtor e presidente da Associação de Amigos da Erva-Mate de São Mateus. 

Estruturar essa transformação exigiu estudo, esforço e persistência. Mais do que agregar valor ao produto final, a recompensa na mira do pequeno grupo de entusiastas era justamente transformar a Região de São Mateus em uma indicação geográfica. 

Nova geração de produtores vê a IG como inovação e qualidade no cultivo da erva-mate

Em 2010, gerações mais jovens de famílias envolvidas há décadas com a erva-mate deram partida em um estudo intenso para mapear a região e identificar o que diferencia os ervais de lá de outras zonas de produção no Brasil. 

As conclusões: as condições climáticas, a amplitude térmica grande, a matriz genética da erva, o cultivo em meio à floresta e o saber fazer dos agricultores fazem toda a diferença no produto final.  

Em anos de trabalho, mais gente se juntou à iniciativa e, com a ajuda do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), um documento de 1,7 mil páginas embasou a defesa do pedido de Indicação de Procedência feito ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), órgão responsável pela análise e concessão dos registros de IGs no Brasil. 

Em 2017, o INPI reconheceu a notoriedade da região de São Mateus – composta pelos municípios de Antônio Olinto, Mallet, Rebouças, Rio Azul, São Mateus do Sul e São João do Triunfo. 

O ouro verde de São Mateus

Como é de praxe nas indicações geográficas, a IG-Mathe (cujo h extra só se dá por uma questão de marca) tem critérios pré-estabelecidos e hoje fiscalizados pela associação. 

Para sair com o selo da Indicação de Procedência, os ervais precisam crescer em consórcio com a Mata Atlântica. Não é permitido o uso de defensivos agrícolas nem outra matriz genética que não seja a Ilex paraguariensis nativa da região. 

Isso é importante porque houve importação de plantas argentinas. Por natureza, elas produzem sementes mais cedo e menos folhas. 

Casos de família

Adão Saniszewski está no negócio de mate há anos, à frente da Taquaral. A empresa é metade agro, metade indústria, pois processa as folhas que planta. Para ele, foi um processo de convencimento virar a chave para outro método de cultivo. “A gente aprendeu a valorizar o produto, a erva feita desse jeito. A IG trouxe isso, né?”, diz. 

A família de Adão exemplifica bem como a IG impactou tantas outras famílias, cujas histórias estão intrinsecamente ligadas ao cultivo da erva-mate. Fazer diferente, nesse caso, é só a maneira new age de seguir o caminho iniciado pelos antepassados. 

Alisson é filho de Adão e tem 23 anos. O orgulho que ele sente em produzir dentro de uma IG vem de ideias novas e tradições antigas. “Primeiro, é a valorização da minha cidade. Depois tem a preservação da mata. E também o orgulho de continuar o que meu pai e meu avô começaram”, explica.  

Alisson é a 3a geração de produtores da Taquaral

Assim como aconteceu na Canastra, onde os filhos voltaram para o interior para produzir o queijo, a IG fez muitos herdeiros do mate que saíram para estudar fora voltarem para São Mateus. 

Com Fernando Toppel, 28 anos, foi assim. O engenheiro agrônomo se formou em Curitiba e tinha a opção de trabalhar em outras cidades. Escolheu voltar para a cidade natal para se tornar a 4a geração de produtores da família. “Quando me formei, eu via que a erva-mate tinha um potencial enorme, mas não existia a IG. Vim para participar da estruturação do processo. Hoje, aplico na prática o que aprendi na teoria”, explica.   

O pensamento de Ederson Skodoski, 36 anos, é parecido, com um adendo interessante. “A gente brinca aqui que polaco é desconfiado, precisar ver para acreditar, demora a mudar. Mas, aos pouquinhos, a gente vai conseguindo mostrar que vale a pena fazer desse jeito, que é um ganha-ganha”, afirma. 

Ederson é do time que extraiu mais que um selo da busca pela IG. Além do erval, ele é sócio da InovaMate, startup que desenvolve inteligência para o campo. Uma das aplicações é a tecnologia de rastreamento que acompanha as embalagens certificadas com a IG-Mathe. Com um clique, o consumidor acessa dados sobre a origem das folhas, quem as produziu e em quais condições. Hoje, há cerca de 30 produtores credenciados para usar o selo.

É isso que o povo quer

A casa de Eloína Telho é uma colcha de retalhos do que ela e o marido, Fred, já viveram. Se as paredes se esticam para abrigar mais uma peça de arte popular brasileira, os armários da casa se aprofundam para caber mais xícaras, bules, potes e sachês de chá. Goiana, radicada em Brasília, de segunda a sexta Eloína é funcionária pública. De segunda a segunda, ela é especialista em chá.  

No passaporte, carimbos da Índia, da China, do Japão, do Peru mostram que ela já percorreu um tanto de chão para conhecer as muitas possibilidades da Camellia sinensis, a planta do chá, de origem chinesa. 

Sempre que dá, a mala é despachada com Ilex paraguariensis. “Eu levo para mostrar o ‘chá’ brasileiro. Tem sempre uma reação curiosa. Na China, foi principalmente pela complexidade do preparo do chimarrão”, conta. O “chá” vai entre aspas porque, como ela bem explica, só é chá o que é feito a partir da Camellia. Com outras plantas, o jeito certo é falar em infusão. 

As expedições de Eloína também passaram pelo Brasil, nos campos de chá do Vale do Ribeira, no interior de São Paulo, e nos ervais do Sul do país. Eloína está em linha com a proposta da IG-Mathe. Ela quer saber quem são as pessoas por trás do rótulo, como aquele produto é feito, de onde ele vem. “Faz toda diferença porque você compra uma história junto. Um produto nunca é só um produto. Saber de onde ele vem muda a sua experiência”, acredita.  

Segundo ela, o consumidor brasileiro está mais consciente – e exigente – quanto à origem do que leva para casa.  “Um produto com IG é uma vantagem, é uma maneira de valorizar o que é nosso também”, diz. 

Olha o matiiiiiii

Devemos aos povos indígenas a infusão da erva-mate. Relatos históricos do início da colonização europeia na América do Sul trazem diversas referências do consumo das folhas, seja no Peru ou nos países que hoje compõem o bloco do Mercosul. 

“A América nasceu bebendo mate”, escreveu o historiador Temístocles Linhares, ao traçar a linha do tempo da bebida. A própria palavra “mate” deriva do termo “mati”, cunhado pelos quíchuas, povo original do Peru. Mati significa cabaça, cuia, que já era usada como recipiente para beber a infusão. O que se sabe é que caá-i (em tupi-guarani: água de erva) era parte fundamental da alimentação dos guaranis, povos espalhados pelas margens dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. 

No entanto, segundo o historiador, era iguaria tão apreciada que outras tribos percorriam longas distâncias, inclusive atravessando os Andes, para trocar outras mercadorias pela erva. 

A influência foi passada aos europeus com a chegada dos conquistadores, mas não sem algum protesto. Padres jesuítas chegaram a acusar a bebida de lasciva e, na tentativa de coibir o consumo mesmo entre os povo nativos, argumentaram que o diabo estava no mate. 

A história deixa claro que a estratégia não deu certo.

Tela de Benedito Calixto mostra catequização de povos indígenas por padres jesuítas

No caso do Brasil, sobretudo no Paraná, além dos guaranis, os kaingangs contribuíram para difundir a prática entre os homens brancos. Acredita-se que muito pouco mudou de lá pra cá na maneira de preparar a infusão. O que mudou mesmo foi a percepção sobre a bebida. 

A erva-mate ganhou um peso tão grande para a economia do estado que chegou a ser o maior ativo de seu PIB. A riqueza que veio dos ervais financiou, inclusive, a independência do Paraná do estado de São Paulo, em 1853. 

 

“Amargo doce que eu sorvo
Num beijo em lábios de prata.
Tens o perfume da mata
Molhada pelo sereno.
E a cuia, seio moreno,
Que passa de mão em mão
Traduz, no meu chimarrão,
Em sua simplicidade,
A velha hospitalidade
Da gente do meu rincão."

Glaucus Saraiva - Chimarrão (1992)

Onde a água da bica é quente

A palavra chimarrão é um bem bolado entre expressões de portugueses – marron – e de espanhóis – cimarrón – sendo que ambas significam clandestino. Também eram usadas para designar coisas chucras, brutas. Foi assim que o chimarrão foi visto por longos anos. Bebida sem mérito, amarga, de trago difícil. 

Hoje, sendo o primeiro dos derivados famosos da erva-mate, o chimarrão tem seu séquito crescente. Em São Mateus do Sul, chimarrão é assunto sério. Não bastam as inúmeras referências à cuia e aos apetrechos necessários para preparar a bebida.

Produtores, empresários e prefeitura firmaram uma parceria para transformar uma praça em um chimarródromo. No ponto de encontro da cidade, a qualquer hora do dia, sai água quente das torneiras, sem jamais passar nos 70o C. Perto de lá, em breve, a cidade também vai ganhar a Rua do Mate, uma rua temática, com restaurantes e lojas. 

Nasce um clássico

Quem vê os vendedores de chá-mate aos berros (um clássico, mas aos berros) nas praias do Rio de Janeiro talvez não imagine que a bebida que arrefece o calor dos cariocas surgiu no Paraná. 

Em 1938, a empresa Leão Júnior, que industrializava erva-mate desde o início do século, resolveu lançar um chá da folha tostada. Pegou? Mate-Leão.

A inspiração veio dos modos europeus, em que o chá é associado ao refino e consagrado principalmente pela corte britânica. O momento não poderia ser mais oportuno. 

Era véspera da Segunda Guerra Mundial e, quando o combate eclodiu, o preço de importação do chá saiu pelo telhado. A classe média e a elite brasileiras recorreram à novidade nacional para contornar a escassez dos importados e o lançamento acabou sendo um sucesso. A versão gelada – adoçada e temperada com limão – se consagrou na década de 1950, no Rio de Janeiro, por causa do calor. 

Erva-mate tipo exportação

Um dos desafios reais das indicações geográficas é conseguir, na prática, imprimir valor aos produtos que protege. Talvez por isso o time da IG-Mathe tenha feito tanta questão de mostrar o caso da Baldo, uma gigante da indústria de erva-mate, nascida no Rio Grande do Sul e hoje com operação internacional.  

As linhas de erva-mate processada e de chás de erva tostada irrigam os mercados nacional, argentino e uruguaio, mas há clientes na Europa e nos EUA também. No ano passado, pela primeira vez, a empresa comprou toneladas de erva-mate com IG para uma série limitada, totalmente voltada para o Uruguai. 

“É um produto especial, com rastreabilidade e lotes limitados. O paladar do uruguaio pede uma erva mais suave, só feito de folhas, sem talos”, explica Gustavo Musialak, gerente da fábrica da Baldo em São Mateus. 

Para Helinton Lugarini, produtor e presidente da Associação de Amigos da Erva-Mate, é o começo de um processo que pode trazer muitas recompensas para São Mateus e para o Brasil. 

“Dá para separar antes e depois da indicação geográfica, não só para o produto, mas para a nossa terra. Até agora a gente brinca que preparou a casa. Agora temos a obrigação de mostrar todo esse capricho ao consumidor final. E vou dizer: a gente quer que as pessoas saibam que quando você consome a erva-mate de São Matheus, você está consumindo uma origem e ajudando a preservar o remanescente de Mata Atlântica.” 

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