Sem segurança não existe vida social organizada, afirma Ricardo Lewandowski

Em entrevista à revista Veja, o ministro recém-aposentado do STF fala sobre o tema de segurança jurídica e como ele afeta o país

foto: Ricardo Lewandowski fala ao microfone

O ministro recém-aposentado do STF Ricardo Lewandowski foi protagonista de alguns dos mais marcantes eventos políticos da história recente do Brasil. Foi figura de destaque nos julgamentos do Mensalão e da Lava-Jato, tendo ascendido à mais alta Corte do país em 2006, e a presidido entre 2014 e 2016. E foi justamente por ocupar esta cadeira que se viu na função de presidente do Senado Federal para fins do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Lewandowski não se tornou juiz por concurso, mas pelo quinto constitucional. Advogou por 16 anos antes de entrar no Poder Judiciário, em 1990, após indicação pela Ordem dos Advogados do Brasil para compor o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Conhece as agruras e os dilemas, portanto, do lado do julgado e do julgador, o que lhe dá uma perspectiva privilegiada sobre as causas e consequências da insegurança jurídica no país.

Aposentou-se no início do ano para se dedicar à advocacia, a projetos pessoais e, desde 30 de maio, a compor o Conselho Temático de Assuntos Jurídicos da CNI. Também leciona como Professor Titular do Departamento de Direito do Estado da USP (onde se formou em 1973) as disciplinas Teoria Geral do Estado e Garantias Processuais do Cidadão em Juízo.

Às vésperas de presidir a primeira sessão do CAJ, o ministro concedeu uma entrevista por email ao VEJA INSIGHTS:

VEJA INSIGHTS - Quais as consequências da falta de segurança jurídica para a sociedade de uma forma geral?

RICARDO LEWANDOWSKI - Sem segurança não existe vida social organizada. Nos bolsões onde o Estado não penetra, seja aqui, seja em outros países, como ocorre nas áreas dominadas por bandos armados, narcotraficantes ou milicianos, as pessoas são reféns de criminosos, que determinam o que elas podem ou não fazer.

VEJA INSIGHTS - Como a segurança jurídica é equivalente à segurança física e à segurança da propriedade privada?

RICARDO LEWANDOWSKI -  O primeiro sentido da expressão “segurança” que nos vem à mente é justamente aquele que diz respeito à garantia da vida e da integridade física, bem como ao livre usufruto da propriedade privada. Foi nessa acepção que Thomas Hobbes empregou a palavra, em seu Leviatã, datado de 1651, no qual ele defendia a ideia de que as pessoas, por meio de um contrato social, elegeriam uma autoridade comum, para garantir a segurança de todos, mesmo que às custas da restrição de alguns direitos e liberdades. Assim surgiu o Estado Moderno,exclusivo detentor da competência de legislar, julgar, tributar, estabelecer a moeda, decretar a guerra, celebrar a paz, fixar pesos e medidas, etc.

VEJA INSIGHTS - E quais as consequências desta visão para a indústria e para o empreendedorismo?

RICARDO LEWANDOWSKI - A consequência dessa concepção é que o Estado tem o dever de garantir a segurança da coletividade, nela compreendida a segurança jurídica, para que os negócios lícitos possam fluir sem sobressaltos, produzindo bens e serviços, além de gerar empregos, rendas e tributos.

VEJA INSIGHTS - Quais as causas da falta de segurança jurídica no Brasil?

RICARDO LEWANDOWSKI - Uma das maiores causas da insegurança no Brasil é o imenso número de leis em vigor que, além de não serem corretamente cumpridas por seus destinatários, em especial pelo Poder Público, passam por uma constante alteração no Congresso Nacional. É comum que as pessoas, em função dessa permanente mudança, nem sempre saibam claramente o que está ou não valendo, sobretudo no campo tributário. Outra causa de insegurança jurídica é a constante modificação da jurisprudência dos tribunais, não raro com efeitos retroativos.

VEJA INSIGHTS - Faltam instituições para garantir segurança jurídica? As instituições são falhas? Ou o problema é cultural?

RICARDO LEWANDOWSKI - Creio que insegurança jurídica que sentimos é em grande parte cultural, pois são muitas e suficientes as instituições que supostamente a garantem: Judiciário, Ministério Público, Polícia, etc..

É claro que sempre podem melhorar a respectiva atuação. Interessantemente, um conceito que vem tendo uma aceitação crescente em países cultural e economicamente mais desenvolvidos corresponde à “legítima confiança”, cuja essência é a previsibilidade quanto ao comportamento alheio, tanto com relação aos particulares, quanto aos agentes públicos. Isso significa, em essência, que é preciso saber, com uma boa margem de certeza, como as outras pessoas vão se comportar numa dada situação.

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VEJA INSIGHTS - Quais os caminhos para aumentar a segurança jurídica no país?

RICARDO LEWANDOWSKI - Um dos primeiros caminhos é fazer com que as garantias constitucionais que asseguram o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido sejam rigorosamente respeitadas por todos.

VEJA INSIGHTS -  A CNI criou o Conselho Temático de Assuntos Jurídicos (CAJ), cujo objetivo é justamente buscar o aumento da segurança jurídica no país. Na prática, o que vai ser feito pelo CAJ?

RICARDO LEWANDOWSKI - Nós vamos procurar identificar os obstáculos que impedem que segurança jurídica possa gradualmente ser implementada entre nós de modo a incrementar a confiança dos investidores. Pretendemos apresentando sugestões para superar tais empecilhos.

VEJA INSIGHTS - No Brasil é comum ouvir a expressão “essa lei não pegou”. O que faz uma lei pegar ou não?

RICARDO LEWANDOWSKI - As leis que não correspondem à realidade dos fatos ou aos valores predominantes de uma dada sociedade “não pegam”, porque são artificiais e, por isso mesmo, não são acatadas pelas pessoas. Também “não pegam” as leis casuísticas, aprovadas apenas para atender a determinados interesses particulares.

VEJA INSIGHTS - O empresariado reclama especialmente de como a Justiça do Trabalho ignora a legislação trabalhista aprovada no Congresso e sancionada pelo Executivo. É o caso de uma legislação malfeita?

RICARDO LEWANDOWSKI - A acelerada mudança tecnológica nos tempos atuais vem introduzindo a cada dia novas variáveis que precisam ser considerados pelo mercado, a exemplo do uso de robôs e da inteligência artificial, que alteram as relações de trabalho e exigem uma uma constante requalificação da mão de obra. Isso faz com que as leis trabalhistas fiquem rapidamente desatualizadas, pois muitas delas foram concebidas ainda no auge da Revolução Industrial do século XIX.

VEJA INSIGHTS - É comum jogar a culpa da falta de segurança jurídica do Judiciário e no Legislativo. O cidadão/contribuinte/empresário também tem sua parcela de culpa?

RICARDO LEWANDOWSKI - As pessoas de um modo geral precisam desenvolver um sentimento cívico mais aguçado, começando por ajudar um pouco mais os necessitados. Seria interessante também que deixassem, por exemplo, de furar filas, dirigir no acostamento ou estacionar em vagas reservadas para idosos e deficientes físicos. Isso ajudaria muito.

VEJA INSIGHTS - O brasileiro abusa do direito de buscar a Justiça por qualquer motivo?

RICARDO LEWANDOWSKI - Nos países que adotam constituições democráticas, como a nossa, com um alentado catálogo de direitos e garantias, ocorre o fenômeno que o sociólogo português Boaventura Souza Santos chama de “explosão de litigiosidade”, em que as pessoas acorrem em massa aos foros e tribunais para defenderem os seus interesses.

VEJA INSIGHTS - A morosidade da Justiça é outra causa importante da falta de segurança. Há solução para esse problema?

RICARDO LEWANDOWSKI - Uma das soluções consiste em prestigiar os meios alternativos de solução de litígios, como a conciliação, a mediação e a arbitragem. São institutos regulados por lei e que estão em pleno funcionamento.

VEJA INSIGHTS - A CNI defende a reforma tributária como uma maneira de diminuir a insegurança jurídica. De que forma a reforma traria segurança?

RICARDO LEWANDOWSKI - Uma das melhores contribuições que uma reforma tributária poderia aportar seria a diminuição do número de impostos, reduzindo simultaneamente a complexidade da legislação fiscal. Isso contribuiria sobremaneira para reduzir a insegurança jurídica nessa área.

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