"Não vou sair do Brasil. Precisamos é lutar pelo que temos aqui", afirma cientista que tem mais de 15 patentes registradas

A brasileira Joana D'arc Felix superou adversidades, ganhou renome na ciência e hoje contabiliza importantes patentes, conquistadas em parceria com jovens estudantes

Em teoria, as chances estavam contra Joana D'Arc Felix desde o início. Nascida em uma família pobre em Franca, no interior de São Paulo, Joana é negra, filha de uma empregada doméstica e um funcionário de curtume da cidade, famosa pela indústria calçadista. Mas, no mundo da ciência, teorias existem para serem testadas, desfeitas e reconstruídas o tempo todo. E a ciência habita Joana desde... bem, desde sempre.

Aos 4 anos já sabia ler. Estudou no Serviço Social da Indústria (SESI) na 1ª e 2ª séries do ensino fundamental. Aos 14, passou no vestibular em química para três das mais prestigiadas universidades brasileiras. A escolha foi precoce e, como tantas coisas na vida dela, inusitada. "Meu pai trabalhava na indústria e eu via os químicos trabalhando de jaleco. Achei aquilo bonito demais. Me apaixonei primeiro pelo jaleco", lembra, rindo.

Escolheu a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lembra bem como foi dureza vencer a fome e o dinheiro curto para seguir na academia. Seguiu. Aos 24 anos se sagrou doutora em química pela mesma Unicamp. Então, veio o convite para um pós-doutorado em Harvard, nos Estados Unidos. Ali, aceitando a sugestão do orientador, tomou como problema de pesquisa um dilema nacional, que ela conhecia muito bem: o que fazer com o resíduo do curtume. Ela não poderia imaginar que de Harvard a vida a levaria de volta à Franca, em função da doença da mãe. De estudante, virou professora de química na Escola Técnica Estadual Professor Carmelino Corrêa Júnior (ETEC). 

Resolveu fazer diferente e envolver os alunos, que têm entre 14 e 20 anos, no desenvolvimento de pesquisas de ponta. No começo, "era uma dificuldade, tinha dois, três alunos comigo". Hoje, 14 anos depois, os estudantes fazem lista de espera para compor o grupo de pesquisa e a iniciativa despertou interesse de outras escolas, que querem implementar projetos semelhantes.

Joana coleciona mais de 50 prêmios e 15 patentes de novas tecnologias criadas na ETEC. Entre elas, um cimento ósseo que ajuda a regenerar o osso humano e uma pele artificial que pode revolucionar o tratamento de queimaduras. 

"No começo, eu não queria voltar. Ouvia muitos outros pesquisadores brasileiros reclamando que não tinham como fazer pesquisa no Brasil. Eu sei que a vida escreve certo por linhas tortas. Foi a melhor decisão que tomei. Hoje, não saio mais do Brasil. Nós temos é de lutar para melhorar o que temos aqui", diz.

Em entrevista à Agência CNI de Notícias, ela fala sobre ciência, preconceito, o poder da educação, iniciação científica e sobre como os centros de pesquisa precisam interagir com a indústria para viabilizar pesquisas e melhorar a vida das pessoas.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Como foi a sua volta ao Brasil? 

JOANA D'ARC FELIX - Minha mãe adoeceu e decidi voltar. Comecei a trabalhar na ETEC e pensei em fazer diferente, incentivar a iniciação científica, como aconteceu comigo durante a universidade. Mas o desafio foi trazer isso para a educação básica. Hoje, o jovem não tem compromisso com a pesquisa, ele não é incentivado. Então comecei a fazer grupos de pesquisa aplicada.

No começo, tinha pouca gente. Hoje, temos fila de espera. Além disso, é um jeito de mostrar que a ciência é algo interessante, é legal. E, no Brasil, a desigualdade pesa. O jovem negro, de baixa renda, com famílias desestruturadas automaticamente, pensa que a ciência, a universidade, as possibilidades de uma vida melhor não são para ele, são só para os brancos. Vejo isso todo dia. A maioria dos alunos que chegam aqui tem histórias assim. 

"Comecei a trabalhar na ETEC e pensei em fazer diferente, incentivar a iniciação científica, como aconteceu comigo durante a universidade", conta Joana

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - E como você acha que a educação impacta a vida deles? 

JOANA D'ARC FELIX - Vou te dar um exemplo. Há pouco tempo dei uma palestra para jovens na Fundação Casa, onde ficam jovens infratores. Falei da minha história, falei da química, todo mundo prestou atenção. Há coisa de 40 dias, uma das psicólogas me procurou para dizer que três internos estão prestes a sair e querem fazer projetos comigo. Eles têm histórias muito violentas, mas você vê... acho que plantei uma semente no coração deles naquele dia. Temos de acreditar no poder transformador da educação. Depende de nós.

Já tive alunos envolvidos com tráfico, prostituição e hoje estão na universidade. Muitos estudando química, que eles diziam ser tão chato! No ano passado, apresentamos o projeto do cimento ósseo na Olimpíada de Gênios, em Nova Iorque. Eram 75 países participando. Nós ficamos em 4º lugar. Há chances para todos. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Muitos dos projetos desenvolvidos por vocês renderam patentes, inclusive o cimento ósseo e a pele humana sintética. Por que patentear?

JOANA D'ARC FELIX - Acredito que é um jeito de devolver à sociedade tudo o que ela me proporcionou para chegar até aqui. Estudei em uma universidade pública, a melhor da América Latina, e devo esse retorno. No caso do osso, conseguimos extrair colágeno do resíduo do couro e hidróxido apatina da escama descartada de peixes, e conseguimos criar um produto em prol da saúde humana. Ao fazer isso, diminuimos o impacto de um resíduo que não tinha serventia nenhuma e contamina o meio ambiente. Precisamos valorizar isso.

Não adianta nada produzir conhecimento que não é de interesse da sociedade. Essa mentalidade é muito real nos Estados Unidos e na Europa, mas aqui no Brasil não é comum. Depois que temos a patente, fazemos a transferência de tecnologia e a nossa inovação chega nas pessoas. E, assim, temos jovens de 15, 16 anos recebendo royalties pelo que criaram. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - O que você acha da parceria entre centros de pesquisa e a iniciativa privada?

JOANA D'ARC FELIX - Mais uma vez, algo muito comum e incentivado lá fora é mal visto no Brasil. No ano passado, conseguimos, com uma empresa do Rio de Janeiro, 50 bolsas de estudo para iniciação à ciência e financiamento para novas pesquisas. A gente não pode esperar só o governo, o dinheiro público. Tem tanto pesquisador com o recurso aprovado em fundos públicos, mas o dinheiro não chega nunca. Temos de atuar com o setor privado, com a indústria. Eu sei que é difícil, mas não é impossível. 

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Você tem vontade de sair do Brasil? Deve receber muitos convites. 

JOANA D'ARC FELIX - Eu não vou largar o Brasil por nada. Precisamos é de lutar pelo que temos aqui. Fazer o nosso país melhor. 

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