Da transição energética à política industrial: os 4 paradoxos das transformações globais

Guineense Carlos Lopes, referência de debates sobre desenvolvimento econômico e professor da Universidade de Cape Town, participou do 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria

Homem pardo em púlpito no Congresso de Inovação

O mundo como conhecemos por várias décadas mudou e algumas ideias que guiavam o comércio internacional, como a teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo, não respondem mais às perguntas atuais. “Era o que estávamos habituados e agora vamos ter de nos habituar a outro tipo de quadro de pensamentos e temos que mudar as nossas cabeças”, disse Carlos Lopes em sua palestra no 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria.

O economista nascido em Guiné-Bissau, que é referência mundial em debates sobre desenvolvimento econômico e já foi número dois da Organização das Nações Unidas (ONU), discursou no Keynote Speech - Navegando nas transformações globais: geopolítica, inovação e resiliência econômica em um mundo em mudança, nesta quarta-feira (27)

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Alguns exemplos citados pelo professor de economia de que o mundo não funciona mais do mesmo jeito são as medidas de taxação do carbono. “Em princípio é para o bem porque é uma forma de penalizar a sua intensidade através das importações que são taxadas de forma diferente, mas na realidade é um mecanismo que é introduzido para produzir protecionismo”, disse, apontando a contradição com a lógica de não-discriminação comercial promovida pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

A guerra na Ucrânia e a discussão que ela provocou sobre a relação de forças das grandes potências é outro exemplo. 


“Nós temos os grandes atores que estão revendo as suas opções fora de um quadro multilateral global. Está acabando o multilateralismo tal como nós o conhecemos atualmente", completou.


No mundo atual, há três principais megatendências apontadas pelo economista que não podem ser equacionadas de forma clara. São elas: demográfica, climática e tecnológica.

Essas tendências levam a quatro paradoxos: transição energética, política industrial, batalha de jurisdições e futuro do capitalismo.

Entenda cada um dos pontos:

1)    A megatendência demográfica e o impacto na criatividade

O envelhecimento acelerado da população, especialmente em países economicamente mais desenvolvidos, tem levado a uma crise de criatividade. “A criatividade está ligada à juventude”, disse o economista. Ele citou que no Japão, por exemplo, o número de patentes diminui conforme a idade média progride.

A resposta é investir na atração de talentos além das fronteiras nacionais. “Países que conseguem atrair talentos e estão no auge da inovação e tecnologia são países que mantêm a juventude e a diversidade do talento porque gerem talento de forma global”, afirmou. “Países que pensam que vão sair desta equação apenas com talento nacional estão condenados a longo prazo ao fracasso”, completou.

Junto a isso, estamos perto dos limites do atual regime de propriedade intelectual com o avanço da inteligência artificial, o que pode levar ao que o economista chama de “uma governança quântica” da PI, o que reduz as soberanias nacionais.

2)    A megatendência das mudanças climáticas e investimentos

Apesar da necessidade de uma transição para uma economia de baixo carbono, boa parte dos investimentos ainda estão atrelados a combustíveis fósseis, o que é apontado como um desafio por Lopes.

“Há uma carteira gigantesca de investimentos que não é fácil superar”, disse. “As grandes metas para descarbonização e para atingir a net zero são muitas vezes intenções que não incluem os principais atores da economia mundial”, completou.

3)   A megatendência da transição tecnológica e globalização

Novas tecnologias como inteligência artificial, nanotecnologia,bioeconomia e computação quântica vão trazer “a ilusão das fronteiras”, nas palavras de Lopes. 

No futuro, o principal valor vai ser a taxonomia, ou seja, quem decide padrões universais. Alguns exemplos são sistemas de pagamento e tecnologias blockchain que permitem transações com segurança.
 

Palco com telas diferentes em tons de azul e verde e homem pardo no palco discurso para público
Carlos Lopes fala sobre os paradoxos das transformações globais no 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria

As megatendências e os paradoxos

As discussões relativas a essas três megatendências levam aos quatro principais paradoxos do momento atual. São eles:

1) Transição energética 

Critérios tradicionais como produtividade, vantagem comparativa e competitividade não são mais cruciais para tomada de decisão de grandes investimentos na transição energética. “Onde há mais investimento é nos países e em tecnologias que não são mais proveitosas”, disse Lopes. 

Ele citou a concentração de recursos em projetos de hidrogênio verde na Europa, continente que não conta com abundância de fontes renováveis de energia, em contraposição aos poucos investimentos na África, que concentra 60% do potencial de H2 verde do mundo, de acordo com dados da Agência Internacional de Energia citados pelo economista.

Outro exemplo são as críticas da União Europeia a subsídios da China para carros elétricos, enquanto o bloco adota esse tipo de incentivo. “A leitura é adaptada geopoliticamente e o paradoxo não ajuda a natureza”, completou.

2) Política industrial 

Embora o mundo viva um retorno das políticas industriais, Lopes sustenta que elas estão baseadas em princípios keynesianos em que o Estado estimula a economia mas sem mudar o cenário de “financeirização extrema”. 

De acordo com ele, esse modelo é contraditório porque nem sempre o dinheiro vai para atividades produtivas e inovadoras, que de fato levariam ao desenvolvimento econômico e social.

“Não há política industrial bem sucedida sem que se alterem regras do jogo em termos de retorno de investimento”, pontua Lopes. “O sistema que empresta dinheiro muitas vezes empresta só para ganhar de forma extrativista nas diferentes taxas de juro. Temos que alterar essa regra”, completa.

3) Batalha de jurisdições

A resistência de alguns países em adotar o 5G da chinesa Huawei é um exemplo citado por Lopes para mostrar como cada grande ator econômico quer impor suas regras aos outros. 

Ele também mencionou dificuldades práticas na reorganização das cadeias globais de valor, lembrando declaração recente de uma das  maiores fornecedoras de equipamento militar para o governo americano que reconheceu uma grande dependência de fornecedores chineses. “A integração da economia global no debate do friendly shoring tem limites enormes”, disse o professor.

4) Futuro do sistema capitalista

O último paradoxo apontado por Lopes envolve os saltos tecnológicos feitos por big techs que introduzem inovações à primeira vista positivas mas que nem sempre contemplam aspectos de equidade. 

Nesse contexto, ele cita como um desafio a falta de controle de funções novas. “Devemos saudar esses avanços, mas por trás dessas inovações tecnológicas que beneficiaram com atitudes do bem até certo ponto há uma confrontação”. 

Uma palavra de otimismo

Apesar de apontar diversas contradições e desafios do mundo atual, nem tudo está perdido na visão de Lopes. “A inovação, a produtividade, a competitividade vão passar por transformações muito profundas e os países e o planeta vivem com grande dificuldade períodos de transição profunda”, disse.

Mesmo sendo comum que cada geração pense que vive a maior crise da história da humanidade, o professor lembrou que o movimento é parte da construção da complexidade humana e que o fim do mundo como conhecemos pode significar novas oportunidades no mundo da inovação.


“Águas calmas não fazem bons marinheiros.Os atores da inovação do Brasil têm de se preparar para águas turvas”, completou.


Quem é Carlos Lopes?

Nascido em Guiné Bissau, o economista Carlos Lopes ocupou cargos de destaque, incluindo Secretário-Geral Adjunto da ONU e Diretor Político do então Secretário-Geral da instituição, Kofi Annan. Foi nomeado Alto Representante da União Africana para Parcerias com a Europa em 2018 e membro da Equipe de Reforma da União Africana liderada pelo presidente da organização, Paul Kagame, em 2016.

No meio acadêmico, é professor da Escola de Governança Pública Nelson Mandela, na Universidade de Cape Town, na África do Sul; professor afiliado da Sciences Po, em Paris, e fellow na Oxford Martin School, na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Também integra a Chatham House, organização não governamental, sediada em Londres e The African Climate Foundation. 

Lopes também faz parte de diversos conselhos de alto nível, como a Comissão Global para a Economia e o Clima, a Comissão Global para o Futuro do Trabalho e a Comissão Global sobre a Geopolítica da Transformação Energética.

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