Apesar das incertezas provocadas pela pandemia da Covid-19, a economia mundial, que se recuperou neste ano, deverá manter o crescimento em 2022. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o desempenho econômico será positivo em 4,9% no próximo ano, depois de registrar uma alta de 5,9% em 2021. Já o Banco Mundial (Bird) prevê uma alta de 5,6% neste ano e de 4,3% em 2022. A projeção do FMI para a economia brasileira no próximo ano, no entanto, é bem mais modesta: crescimento de 1,5% no Produto Interno Bruto (PIB).
Apesar disso, o economista Estêvão Kopschitz, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), avalia que o cenário atual é bom para o Brasil. “A economia brasileira é muito influenciada pelo que acontece lá fora”, afirma ele, ressaltando que hoje o momento é de muita incerteza, porque “a situação da pandemia é diferente do que já aconteceu no passado”.
O crescimento entre os países deve ser desigual, conforme preveem FMI e Bird, porque, em alguns lugares, o percentual da população vacinada ainda é muito baixo, especialmente nos países mais pobres. “Embora o quadro da pandemia tenha melhorado, não viramos a página integralmente”, resume Rafael Cogin, economista-chefe do Instituto de Desenvolvimento Industrial (IEDI), que cita como exemplo da incerteza no cenário econômico a piora do quadro em alguns países da Europa.
Cogin diz que, se a questão sanitária se mantiver sob controle – sobretudo com a chegada da variante ômicron –, não haverá grandes turbulências. “A prova vai ser agora, com o aumento de casos na Europa no final do ano. Se os países conseguirem passar bem por essa tensão, as incertezas vão se dissipar”, prevê. Nesse contexto, há um conjunto de outros fatores que devem ser analisados com atenção no cenário econômico internacional: risco de desaceleração da economia chinesa, aumento da inflação e reorganização das cadeias produtivas.
Em relação à economia da China, Cogin detalha que, há alguns meses, se acendeu uma luz amarela com os sinais de desaceleração provocada, especialmente, pela crise no mercado imobiliário. “Isso pode ter impacto importante para o Brasil, não só pela queda nas exportações, mas pela acomodação dos preços de commodities que vinham subindo”, relata. Por outro lado, ele lembra que expectativas menores para o crescimento chinês podem ajudar a arrefecer as pressões inflacionárias.
Paulo Gala, professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), avalia que a inflação seguirá elevada no próximo ano e diz que esse cenário só mudará com a normalização das cadeias produtivas. "No dia em que não tivermos filas de navios em Los Angeles, podemos ter ideia de que a inflação está passando”, comenta, referindo-se ao congestionamento de navios contêineres que aguardam para descarregar seus produtos, resultado do aumento da demanda por parte dos norte-americanos.
O economista André Perfeito, da Necton Investimentos, explica que a inflação está profundamente ligada ao lado da oferta. “A pandemia atrapalhou as cadeias produtivas. Um exemplo é a falta de chip eletrônico. Isso gera uma inflação com característica micro em muitos setores, apesar de ter componentes macro. Tivemos um período de inflação de alimentos e aumento no preço do petróleo, que tem mais a ver com a oferta. O instrumento da taxa de juros, no mundo inteiro, é pouco eficaz para a inflação causada por problemas de oferta”, avalia.
Essa também é a opinião de Antonio Corrêa Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon). “A questão-chave é que a atual pressão inflacionária se caracteriza nitidamente como um choque de oferta, e não de excesso de demanda”, diz. Segundo ele, esse problema ocorre em nível global e, por essa e por outras razões, também afeta o Brasil. “O aumento nas cotações das matérias-primas, especialmente petróleo e grãos (commodities) no mercado internacional, associado à desvalorização do real, tem pressionado os preços domésticos dos combustíveis e de outros produtos”.
Levantamento de André Perfeito, com base em dados da Bloomberg, mostra que a inflação aumentou em diversos países. Ao desalinhar as cadeias produtivas globais, explica ele, a pandemia provocou escassez de insumos no mercado internacional. Com a falta de matérias-primas e a reabertura da economia, os preços ficaram mais caros em diferentes regiões. Nos Estados Unidos, a inflação chegou a 6,2% em 12 meses, a maior desde novembro de 1990.
Reorganização das cadeias produtivas
Ricardo Sennes, sócio da consultoria Prospectiva, destaca que a economia mundial passa, atualmente, por mudanças conjunturais – principalmente associadas à pandemia de Covid-19 – e estruturais – que envolvem a reorganização das cadeias produtivas. Segundo ele, o desenvolvimento de novas tecnologias está provocando um deslocamento econômico no qual o Brasil e a América Latina como um todo perdem em competitividade. “Não desenvolvemos um modelo para o novo ciclo tecnológico”, lamenta Sennes.
Ainda que algumas indústrias e empresas no Brasil tenham feito investimentos para acompanhar as mudanças estruturais, “a América Latina está sendo preterida, em particular no setor industrial e na parte do setor de serviços vinculada ao processo produtivo”, argumenta Sennes. De acordo com ele, o Brasil parece não ter conseguido formar uma agenda estratégica, nem no âmbito interno nem no externo para lidar com o novo contexto.
Em evento organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o economista Renato Baumann afirmou que, “se antes a decisão sobre a localização de unidades produtivas era essencialmente a partir de custos – de mão de obra e acesso à matéria-prima ou custo de transporte –, agora há um componente adicional geopolítico neste processo decisório, seja para reduzir a dependência de fornecedores ou por razões ideológicas”.
A esse cenário, diz Baumann, agregam-se questões como o conflito latente entre EUA e China, a perspectiva de ter que optar por um dos três padrões técnicos (norte-americano, europeu ou chinês) – que não são necessariamente compatíveis entre si – e pressões internas relacionadas ao processo de globalização, como a adoção de medidas protecionistas em alguns países. Outro elemento importante nesse contexto são os mega-acordos comerciais, que, ao defender interesses regionais, trazem mais dificuldades para países como o Brasil, diz Baumann, também do Ipea.
No mesmo evento, Sandra Rios, senior fellow do Cebri, afirmou que a tendência mundial é a regionalização das cadeias de valor, e que esse processo não é de agora, visto que elas sempre foram mais regionais do que globais. “Talvez a oportunidade seja aproveitar o momento para mudar nossas próprias políticas econômicas em relação à abertura comercial, optando por uma estrutura com modelos de integração”, diz ela.
Renato da Fonseca, economista-chefe da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirma que a reorganização das cadeias produtivas abre espaço para o Brasil, mas é preciso se preparar para isso por meio de uma reforma tributária, da redução de burocracia no comércio exterior, da ampliação de acordos comerciais e de investimentos em inovação. “Novos acordos sempre ajudam, mas, sem competitividade, não aproveitaremos as oportunidades. É difícil para o Brasil entrar nas cadeias globais sem essas mudanças”, comenta.
Mais exportações
Principais parceiros comerciais do Brasil, os Estados Unidos e a China estão entre os países que devem registrar crescimento acima de 5% em 2022, segundo as estimativas do FMI. Nos países da União Europeia, o crescimento médio esperado é de 4,3%. Fabrizio Sardelli Panzini, gerente de Integração Internacional da CNI, avalia que esse cenário vai favorecer o Brasil. “Em geral, além da pauta industrial, temos um mundo que pode ter demanda maior por produtos brasileiros”, prevê.
Esse aumento na demanda, que poderá se ampliar no próximo ano, começou em 2021. Entre janeiro e setembro, a corrente brasileira de comércio exterior de bens (soma de exportações e importações) chegou a US$ 370,6 bilhões, a maior dos últimos cinco anos, conforme dados do Ministério da Economia. Houve crescimento generalizado dos fluxos em relação ao mesmo período de 2020, refletindo a recuperação do comércio internacional em relação aos impactos econômicos da pandemia.
A China destacou-se como o principal parceiro do Brasil tanto em exportações (34% do total) quanto em importações brasileiras (22% do total), com uma corrente bilateral de US$ 105,9 bilhões no acumulado do ano. Embora a participação da indústria de transformação tenha caído, os principais setores apresentaram crescimento das exportações em relação ao mesmo período em 2020, destacando-se a fabricação de produtos alimentícios (+22%), de metais básicos (+31%) e de produtos químicos (+32%).
Os dados da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram que a alta global das exportações no segundo trimestre de 2021, em relação ao segundo trimestre de 2020, foi de 23%. Nos EUA, o aumento foi de 29%; na União Europeia, de 28%; na China, de 21%; e no Japão, de 32%. No mesmo período, as exportações do Brasil registraram uma alta de 16%. Ainda segundo a OMC, as importações brasileiras cresceram em 26%, mais que a média mundial (de 22%).
Mesmo com a recuperação da economia em diversas partes do globo, a tendência é que a disputa entre EUA e China permaneça nos próximos anos. “Essa é a nova realidade. Os conflitos entre Estados Unidos e China são desdobramentos de uma concorrência mais diversificada e complexa do ponto de vista tecnológico”, avalia Cognin, do Iedi. Segundo ele, há uma forte aceleração da economia da China em constituir competências tecnológicas de ponta. “Em alguns aspectos, coloca em xeque a supremacia das potências ocidentais. É uma questão geopolítica que se expressa no âmbito econômico”, diz.
De acordo com ele, a geopolítica tende a ganhar importância no período pós-pandemia. “Isso passa por questões tecnológicas de proteção ambiental, entre outras. Cada vez mais, os temas ambientais organizarão as relações geopolíticas do mundo inteiro, dada a necessidade de reduzir emissões e controlar a escalada climática”, explica. Esse movimento, diz, está associado à reorganização das cadeias globais de valor.
“Esse tema nunca mais vai sair de cena. A expansão chinesa continua. A tensão com os EUA é permanente. Virou uma guerra pela fronteira tecnológica. A China conseguiu grandes avanços na produção de tecnologia própria”, reforça Gala, da FGV. Na mesma linha, Sennes, da Prospectiva, diz que a disputa com a China é um tema de enorme concordância entre os governos do democrata Joe Biden e do republicano Donald Trump, seu antecessor na presidência dos Estados Unidos: “Estamos falando de uma disputa um pouco diferente da Guerra Fria. A competição aqui é geoeconômica, e não militar”, pontua.
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