Solução simples para um problema complexo?

Em artigo publicado no site do IPEA, o superintendente de Desenvolvimento Industrial da CNI, João Emilio Gonçalves, afirma que a proposta de licenciamento compulsório das patentes não contribuirá para aumentar o acesso ou a produção de vacinas no Brasil

A fim de enfrentar o problema da escassez global de vacinas contra a Covid-19, diversas propostas legislativas estão em debate. Entre elas, o licenciamento compulsório de patentes, frequentemente chamado de quebra de patentes. A proposta parte da premissa de que as patentes seriam responsáveis por criar uma escassez artificial das vacinas e, portanto, sem as patentes, poderíamos produzir e distribuir mais doses.

Partindo de uma premissa errada, a proposta simplifica uma questão complexa e ignora os desafios de produção industrial em escala global. A proposta de licenciamento compulsório das patentes é ineficaz e não contribuirá para aumentar o acesso ou a produção de vacinas no Brasil.

As patentes oferecem um direito temporário de exclusividade para que o titular tente recuperar os investimentos feitos no desenvolvimento tecnológico. 

O direito temporário de exclusividade não é uma garantia do retorno financeiro, pois é possível que um produto patenteado seja um fracasso comercial. Por outro lado, sem as patentes, dificilmente uma inovação industrial seria economicamente sustentável.

As invenções poderiam ser livremente copiadas e ofertadas por concorrentes que não investem recursos em pesquisa e desenvolvimento, não contratam pesquisadores e, sobretudo, não correm riscos. Sem a possibilidade de tentar recuperar o investimento, não haveria incentivo para o desenvolvimento de novos produtos.

Nesse cenário, quem perde é a sociedade, sem acesso a novas tecnologias, mais seguras, mais produtivas, etc. Significa dizer que os benefícios da exclusividade temporária conferida pela propriedade intelectual são coletivos, não apenas privados.

No Brasil este caráter coletivo é ainda maior, pois os maiores titulares de patentes no Brasil são as universidades públicas, com pesquisas financiadas pelo Estado. 

De acordo com a lei brasileira, o pedido de patente tem de se referir a uma única invenção ou a um grupo de invenções inter-relacionadas de maneira a compreenderem uma única concepção inventiva. Trata-se do conceito de unidade inventiva previsto na Convenção União de Paris de 1883, o primeiro tratado internacional sobre propriedade industrial.

O desenvolvimento de produtos complexos envolve uma grande quantidade de desafios tecnológicos. Num carro, por exemplo, há questões relacionadas ao aumento do desempenho e eficiência do motor, à frenagem, ao travamento das portas, etc.

Para cada uma dessas questões é possível ter uma solução tecnológica específica, uma patente específica. Ou seja, não existe a patente do carro, existem patentes para tecnologias específicas do carro. 

É o caso das vacinas contra a Covid-19, que combinam diferentes plataformas tecnológicas. O produto final pode ser composto por diversas soluções, inclusive por técnicas já conhecidas, sem patentes, relacionadas a desafios tecnológicos específicos. Há exemplos de vacinas que combinam tecnologias desenvolvidas em 2011, 2013 e 2020, por agentes privados  e públicos .

Portanto, não há a patente da vacina X ou Y. O que pode haver são patentes para tecnologias que são utilizadas na vacina X ou Y. 

As patentes são limitadas territorialmente, nacionalmente. Não existe uma patente global, válida em todos os países do mundo. Uma patente válida no país A que não foi solicitada no país B, pode ser livremente explorada em B. 

Assim, o ponto de partida de qualquer debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas tem que obrigatoriamente ser a identificação das tecnologias necessárias para a produção que estão protegidas por patentes. Hoje, no Brasil, existem patentes protegidas relacionadas à produção das vacinas contra a Covid-19?

Sem a correta compreensão desses aspectos técnicos relativos ao funcionamento do sistema de patentes, no Brasil e no mundo, não é possível avançar nesse debate.

Em todo o mundo, em diferentes momentos da pandemia, houve escassez de produtos de equipamentos de proteção individual para trabalhadores da saúde, como proteção facial, máscaras cirúrgicas, óculos de proteção, aventais e álcool em gel.

São produtos básicos, cuja escassez foi causada pelo aumento súbito e generalizado da demanda, compra de pânico, acumulação e uso indevido , portanto, sem relação com a propriedade intelectual. 

No caso das vacinas, vencida a etapa de desenvolvimento, testes e registros, a escassez se dá pela dificuldade de produzir, em um curto espaço de tempo o número de doses necessário para atingir a população global. São questões relacionadas à importação e produção de insumos, envase, logística internacional, etc.

Estima-se que uma fábrica típica de vacinas precise de 9.000 diferentes matérias-primas de 300 fornecedores em 30 países.

Se as vacinas dependem de uma cadeia de produção complexa, dispersa em diferentes países, o menor dos problemas em sua confecção e produção são as patentes ou mesmo a propriedade intelectual .

Assim, o segundo ponto a ser analisado no debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas é a identificação dos reais obstáculos para produção das doses. As indústrias locais não estão conseguindo obter licenças das patentes necessárias para a produção?

Sem as patentes, as indústrias locais teriam condições de atingir capacidade produtiva, incluindo acesso a insumos, em prazos compatíveis com a emergência da pandemia da COVID-19?

A tentativa de resolver nacionalmente os problemas globais relacionados à pandemia não é exclusividade do Brasil. Diversos países vêm adotando medidas unilaterais, como a restrição de exportação de medicamentos e insumos.

No âmbito multilateral, a proposta de quebra de patentes também foi apresentada.

Em outubro de 2020, Índia e África do Sul apresentaram uma proposta à Organização Mundial do Comércio (OMC) para suspender temporariamente obrigações internacionais relacionadas à propriedade intelectual, incluindo a suspensão de direitos sobre patentes, desenhos industriais e segredos industriais.

Até maio de 2021, a proposta ainda não atingiu o consenso necessário para ser implementada. Há países que não estão convencidos sobre a eficácia da suspensão de direitos de propriedade intelectual. Para esse grupo, a medida pode ser contraproducente e prejudicar os esforços de colaboração em andamento. Há dúvidas sobre a existência de casos concretos que tenham relação com a propriedade intelectual.

O governo brasileiro apoia uma terceira via, focada em cooperação internacional para aumento da capacidade de produção e distribuição de vacinas . A proposta brasileira é co-patrocinada por Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia.

E se a escassez das vacinas fosse relacionada com a propriedade intelectual? O Brasil precisaria de novas leis ou mudanças em tratados internacionais para enfrentar a situação? A resposta é não.

A legislação brasileira já prevê o licenciamento compulsório de patentes. Foi com base nessa lei que, em 2007, o Brasil concedeu licenciamento compulsório de patentes referentes ao Efavirenz (anti-retroviral utilizado no tratamento da Aids), para fins de uso público não-comercial.

Assim, outro ponto a ser analisado no debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas é a real necessidade de mudanças na lei. Por que a legislação em vigor não seria suficiente?

A previsão legal do licenciamento compulsório, existente na nossa legislação, está em linha com as obrigações internacionais do Brasil. Ao manifestar o apoio à terceira via, o governo brasileiro lembrou que todos os países-membros da OMC estão habilitados pelo Acordo TRIPS a decretar o licenciamento compulsório de patentes como forma de atender a imperativos de ordem pública.

Até o momento, não há registro de que algum dos membros da OMC tenha concedido licenças compulsórias em seus países como meio de enfrentamento da escassez de vacinas.

A própria Índia, autora da proposta na OMC e país com maior capacidade de produção de vacinas , não adotou a medida. Com sua capacidade produtiva no limite, a Índia conta com a ajuda internacional para atender sua própria demanda .

A escassez de vacinas não tem relação com a propriedade intelectual. Até o momento, não há detalhes sobre como seria a implementação de um licenciamento compulsório. Quais são as patentes? Estão protegidas no Brasil?

A escassez de vacinas está relacionada a questões industriais globais, como importação e produção de insumos, envase, logística internacional, etc. Também não se sabe como e quem produziria as vacinas no caso de um licenciamento compulsório.

Os laboratórios públicos, Butantan e Fiocruz, durante audiência pública na Câmara dos Deputados, já apontaram a ineficácia e inconveniência da proposta. Os laboratórios privados nacionais e internacionais declararam que não existe relação entre a escassez de vacinas e as patentes.

A legislação brasileira permite e já foi utilizada para a concessão de licenças compulsórias de patentes. Nesse momento, a maior contribuição legislativa para fomentar o acesso dos brasileiros às vacinas passa por medidas que estimulem a cooperação internacional e a transferência de tecnologias, não por medidas que promovam o isolamento do Brasil.

*O artigo foi publicado na quinta-feira (19), no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

João Emílio Gonçalves é superintendente de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

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