O sistema educacional acaba acentuando a exclusão social, diz Rafael Lucchesi

Integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE), que aprovará a Base Nacional Comum Curricular, e diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) , o economista Rafael Lucchesi diz, entre outras coisas, que “a escola não está a serviço dos professores”

Integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE), que aprovará a Base Nacional Comum Curricular, e diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o economista Rafael Lucchesi diz, entre outras coisas, que “a escola não está a serviço dos professores”. E que a visão pedagógica brasileira “tem preconceito com as profissões técnicas”. Embora recorra a uma metáfora futebolística para se esquivar das perguntas sobre a Medida Provisória (MP) do governo Temer que muda o ensino médio, dizendo que não entrará nesse “Fla x Flu”, Lucchesi é enfático em outros posicionamentos, como, por exemplo, atribuir a interesses corporativistas a inclusão de matérias como filosofia e sociologia na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) — ele até as defende, não como disciplinas, mas como conteúdos.

O GLOBO - O senhor é a favor da MP do ensino médio?

Há um consenso de que o ensino médio está indo na direção errada. E há muito tempo. Evidentemente existe uma disputa política que se acirra com o processo do impeachment e a chegada desse novo governo, mas a discussão de conteúdo dessa questão tem que fluir por algum canal. Não dá para ser no clima do Fla x Flu. O ensino médio é uma etapa do sistema educacional de transição. Uma parte dos jovens vai para a universidade, e outra parte vai para a carreira técnica. Mais de 50% dos jovens fazem a segunda opção, na média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Na Áustria, são 77%. Na Alemanha, 70%. É um desenho que vem de muito tempo nesses países, desde que se montou o sistema de educação de massa. Até porque as corporações de ofício estão na gênese dessas sociedades, há um respeito às profissões manuais. E por que o Brasil não tem respeito a isso? Numa sociedade com quatro séculos de escravidão, o trabalho é um pecado.

O GLOBO - A crítica à ideia do ensino profissionalizante no ensino médio viria, então, do preconceito?

Não dos jovens, isso está provado em várias pesquisas. Talvez o preconceito exista mais da elite que comanda a escola, porque parte de uma visão pedagógica brasileira de que a escola tem que se filiar a uma visão de criticidade e de uma compreensão preconceituosa das profissões manuais. Se você faz uma profissão técnica, está alienando o indivíduo. Mas isso é uma discussão superada. E, na verdade, nos processos fabris hoje, criticidade, capacidade de trabalhar em equipe em células de produção, capacidade de comunicação e de inovação são fundamentais.

O GLOBO - Mas não há o risco de que esse modelo aumente ainda mais a desigualdade nas oportunidades educacionais pelo país, reservando aos mais desassistidos o ensino profissionalizante?

Ao contrário, o modelo atual é que é profundamente elitista e promove uma exclusão social. No Brasil, 17% dos jovens vão para a universidade, mas 83% não vão. E como se dá o ingresso do jovem, em geral, no mundo do trabalho? Dia desses, perguntei para o instalador da TV a cabo que me atendeu. Ele me contou que pagou R$ 300 num curso de instalação e começou a trabalhar. O Estado não dá isso para ele. Ele tem que buscar.

O GLOBO - Uma reforma que diminui a carga horária do conteúdo obrigatório com possibilidade até de retirada de assuntos ligados à área de humanidades não deveria preocupar a sociedade?

Isso vem da visão do pedagogo que acha que a escola é para destruir o capitalismo. Sinceramente, sabe o que eu acho disso? Uma coisa anacrônica. O sistema educacional brasileiro hoje acaba acentuando a exclusão social. É óbvio que a parte de humanidades é muito importante no currículo. E deve estar na Base Nacional Comum Curricular. E deve ser dada com boa qualidade. É importante haver o ensino de filosofia, de sociologia, e não só isso. De antropologia, de direito, de economia, de história, porque tem um papel decisivo na cultura geral. É uma ferramenta útil para interpretar as coisas que estão ao meu redor. Mas será que não dá para conviver com um bloco de criticidade na Base e trilhas opcionais que permitam que 83% dos jovens que não vão para a universidade tenham direito a ter uma identidade social conferida pelo sistema educacional?

O GLOBO - Não há garantia de que sociologia, filosofia, entre outras disciplinas, estarão na Base. Pelas discussões no CNE, podemos acreditar que estarão?

Sim. O “ensino de”, mas não as disciplinas. O ensino de sociologia, antropologia, direito, filosofia, economia, humanidades de uma forma geral deve compor o conteúdo obrigatório. Assim como o domínio dos conhecimentos ligados à linguagem, interpretação de textos, literatura. A construção curricular do ensino médio, por meio da Base, devolve um caráter de Estado ao assunto. É superior a esse mecanismo de pressões corporativistas. Na realidade, hoje, português não é obrigatório (não está descrito na Lei de Diretrizes e Bases), mas filosofia e sociologia são. Não acho que seja razoável.

O GLOBO - Com redução de carga horária e fim de aulas no formato de disciplina, os professores estão preocupados.

Evidente. Mas o sistema educacional não existe para atender aos interesses dos professores, e sim dos cidadãos. É claro que os profissionais ligados à educação devem ser respeitados, mas a prioridade do sistema educacional é atender ao projeto de construção do país.

O GLOBO - O senhor apoia que o ensino médio seja modificado por MP?

Não vou opinar, não cabe a mim fazer essa discussão.

O GLOBO - Mas e o conteúdo, o senhor está de acordo?

Acho que o Brasil precisa de uma lei que reforme o ensino médio, com amplo debate da sociedade. E esse debate já ocorre há algum tempo, não é novo. Essa discussão é urgente porque baliza oportunidades para a vida de muita gente. E não tem nada melhor que inclua as pessoas na sociedade do que a emancipação pela educação.

O GLOBO - A reforma não será mais benéfica para secretários de Educação e governadores, que estão com caixas vazios, do que para os alunos?

Eles são parte interessada, operam esse sistema. Desprezá-los é sandice. Acho que há uma série de consensos: a história da flexibilização, criar trilhas, mas tem que aprofundar. Assim como outras discussões que continuam. O ensino integral deve ser de 1.400 horas? Como é isso no mundo? Na média da OCDE, são 900 horas; na Coreia do Sul, 950 horas. Certamente essa é uma discussão que continua. O que precisa ficar claro é que não existe nenhuma atividade humana que tenha avançado sem gestão.

A entrevista foi publicada no jornal O Globo nesta sexta-feira (18).

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